Coimbra // AAC tenta silenciar discussão sobre a Palestina, outra vez~ 12 min
Por F
Desde Dezembro, há em Coimbra um grupo de estudantes que está a ser silenciado. Querem falar sobre o genocídio em curso na Palestina, e a burocracia da Associação Académica de Coimbra está, mais uma vez, a tentar impedir que a comunidade estudantil discuta e se posicione sobre o primeiro genocídio da História a ser contado na primeira pessoa e transmitido em directo para todo o mundo.
Tudo isto acontece nesta cidade universitária conhecida como “cidade do conhecimento”, enquanto em Gaza ja foram mortos 4800 estudantes, 231 professores, além de um sem-número de intelectuais e académicos. Os bombardeamentos israelitas já destruíram todas as universidades e centenas de escolas em Gaza, bem como bibliotecas, museus, arquivos e reprografias.
A 22 de Janeiro, o assunto começou (finalmente) a ser discutido em Assembleia Magna, sem que se tivesse chegado a uma decisão final. Depois de quatro horas de discussão, com o quórum a aproximar-se do mínimo necessário para a Magna continuar reunida, a presidente da Mesa da Assembleia Magna decidiu suspender os trabalhos, prometendo que este e os restantes pontos da ordem de trabalhos seriam retomados numa próxima Magna, a 7 de Fevereiro.
Acontece que, na convocatória da Magna que acontecerá amanhã, o ponto sobre a Palestina é o penúltimo dos 8 pontos da ordem de trabalhos. Quem conhecer os cantos à AAC percebe facilmente o que isso significa: que o ponto muito provavelmente não vai ser discutido, ou vai ser discutido quando a maior parte dos estudantes já tiverem abandonado a sala. Nada que surpreenda, tendo em conta tudo o que tem sido feito pelos orgãos dirigentes da AAC nos últimos dois meses para silenciar este debate.
Isto, claro, se os e as estudantes reunidas deixarem que a Magna se inicie com a ordem de trabalhos proposta pela mesa.
Dada a gravidade desta tentativa de silenciamento que vai entrar já no seu terceiro mês, e que tem passado em grande medida despercebida no panorama nacional, achamos que vale a pena revisitar todo o processo desde o início da recolha de assinaturas por esse grupo de estudantes.
Dezembro: mais de 1500 estudantes pedem Magna sobre a Palestina
A 4 de Dezembro, foram entregues na Secretaria da AAC mais de 1400 assinaturas de estudantes que pediam a realização de uma Magna para a discussão da situação na Palestina. Dois dias depois, as estudantes proponentes da Magna foram chamadas para uma reunião e informadas de que não teria sido possível validar parte das assinaturas por uma questão técnica alheia à AAC. No dia seguinte, as estudantes recolheram e entregaram 275 assinaturas adicionais.
Esta foi a primeira vez em mais de uma década que estudantes da Universidade de Coimbra tentaram convocar uma Assembleia Magna através da recolha de assinaturas de mais de 5% dos associados da AAC, como previsto nos seus estatutos. Segundo estes, a Magna deveria ter-se realizado num prazo de 10 dias a partir da entrega das assinaturas – considerando-se para este efeito o dia da entrega das últimas assinaturas, 7 de Dezembro.
A Assembleia Magna deve realizar-se no prazo máximo de dez dias a contar da entrega do pedido de convocação.
Ponto 4 do artigo 27.º dos estatutos da AAC
Os estatutos da AAC e a alegada “zona cinzenta”
Tendo sido colmatada essa alegada falta de assinaturas válidas, os orgãos dirigentes da AAC agarraram-se ao outro entrave que havia sido levantado na reunião de 6 de Dezembro – uma suposta “zona cinzenta” que impediria que o presidente da Mesa em funções na altura lançasse a convocatória da Magna, e esta fosse presidida pela nova presidente do orgão, que tomaria posse a 11 de Dezembro.
O Conselho Fiscal, o presidente cessante da Mesa e a nova presidente, que viria a tomar posse dias depois, todos se agarraram a esta “zona cinzenta” para impedir que a Assembleia Magna se realizasse antes do final do período lectivo do primeiro semestre, o que permitiria a participação de toda a comunidade estudantil. No entanto, nunca foram capazes de sustentar as suas alegações nos estatutos da AAC, pois nada neles impede que uma situação destas tenha lugar.
Como explica um parecer jurídico pedido pelas estudantes proponentes da Assembleia Magna e enviado ao presidente da Mesa, não há nos estatutos da AAC “qualquer impedimento de iure a que a assembleia magna seja convocada por determinados membros de uma Mesa da Assembleia Magna e realizada e presidida por outros (novos) membros desse mesmo órgão”.
Podes ler sobre os acontecimentos do início de Dezembro em mais detalhe neste artigo:
A nova Mesa e a convocatória da Magna de 21 de Dezembro
Ainda assim, o então presidente da Mesa decidiu não emitir a convocatória da Magna em tempo útil para que esta se realizasse durante o período de aulas. A 11 de Dezembro, tomaram posse os novos membros da Direcção Geral e da Mesa da Assembleia Magna.
Havia ainda tempo para a nova presidente da Mesa convocar uma Assembleia Magna no prazo de dez dias estabelecido pelos estatutos da AAC, o que não aconteceu.
Depois de o antigo presidente se esconder atrás dessa suposta “zona cinzenta” para não cumprir com os seus deveres, a nova presidente começou o seu mandato a desrespeitar o artigo 27.º dos estatutos da AAC e as suas próprias promessas eleitorais de aproximar a Magna dos estudantes.
Os corpos dirigentes da AAC, apercebendo-se de que tinham metido os pés pelas mãos, procederam a uma reinterpretação dos estatutos da AAC – passaram a considerar dias úteis para todos os prazos referidos nos estatutos. Seguindo esta nova interpretação, a 14 de Dezembro, a Mesa lançou a convocatória para uma Assembleia Magna a realizar no dia 21 de Dezembro – 14 dias depois da entrega das assinaturas, 3 dias antes do Natal e quase uma semana após o final das aulas.
Os estatutos da AAC estabelecem que a Mesa da Assembleia Magna tem que divulgar as convocatórias de Assembleia Magna “até cinco dias antes da sua realização”. Segundo a nova interpretação dos estatutos introduzida pelos actuais orgãos da AAC, tanto este quanto o prazo de 10 dias desde a entrega do pedido para a realização de uma Magna passaram a ser de dias úteis.
Para além de não fazer qualquer sentido do ponto de vista jurídico, já que todos os prazos são contados em dias consecutivos excepto nos casos em que são referidos expressamente “dias úteis”, segundo esta nova interpretação mais de metade das Magnas realizadas no mandato passado teriam sido anti-estatutárias – as Magnas de 6 de Fevereiro, 15 de Março, 24 de Março e 8 de Maio foram, todas elas, convocadas com menos de 5 dias úteis de antecedência.
A Magna de 21 de Dezembro, na qual a maioria da comunidade estudantil não poderia participar por já não se encontrar na cidade e cuja própria convocatória foi anti-estatutária, acabou por ser cancelada. A Mesa, para tentar esquivar-se das suas responsabilidades em todo o processo de silenciamento, atirou a culpa do seu cancelamento para as estudantes e a não apresentação da moção política que serviria de base à discussão.
A Magna de 22 de Janeiro
A 22 de Janeiro, em plena época de exames, teve finalmente lugar a primeira Assembleia Magna desde a tomada de posse dos novos orgãos dirigentes da AAC. A “Guerra na Palestina” aparece como terceiro ponto da ordem de trabalhos e, após as informações e a aprovação do Regimento Interno da Assembleia Magna, é finalmente aberto um espaço para a comunidade estudantil discutir o genocídio em curso na Palestina.
Em discussão estiveram duas moções políticas – uma apresentada pera Direcção Geral da AAC (DG/AAC), intitulada “Moção pela Paz no Médio Oriente AAC”, e outra apresentada pelo grupo de estudantes proponentes da Magna de Dezembro, intitulada “Posicionamento Público da AAC em relação ao genocídio em curso na Palestina”.
A discussão foi rica e bem participada, com estudantes de várias faculdades e secções da AAC a tomar a palavra para expressar o que sentem sobre o genocídio em curso na Palestina. Foram expressas discordâncias com algumas propostas presentes na moção apresentada pelas estudantes, como o corte de relações diplomáticas do estado português com Israel e o fim da colaboração da UC com instituições israelitas. No entanto, foi sobre as falhas e insuficiências da moção apresentada pela DG/AAC que se debruçaram a maior parte das intervenções – entre muitas outras coisas, destacamos que, como foi apontado, esta não contém uma única vez as palavras “genocídio” e “apartheid” nem refere a grave situação vivida pelos e pelas estudantes palestinianas.
O Presidente da DG/AAC tentou, nas suas intervenções, desviar a discussão do genocídio em curso e focar pequenos detalhes das intervenções das estudantes para as invalidar como um todo, sob efusivos aplausos do seu séquito – um espectáculo que espelha a realidade dos debates na Assembleia da República e que torna evidente porque é que a AAC ganhou a fama de ser uma escola de boys (e girls) das juventudes partidárias que aspiram a ser deputados e deputadas.
Depois de quase três horas, e de repetidas tentativas da presidente da mesa para despachar esta discussão, a Assembleia Magna levou a cabo uma votação preliminar em que foi pedido aos e às cerca de duas centenas de estudantes presentes que escolhessem qual das duas moções serviria de base ao posicionamento da AAC sobre a situação na Palestina.
A moção apresentada pela DG/AAC acabou por ganhar esta votação preliminar, com uma margem de apenas 20 votos – 104 votos contra os 84 votos pela moção apresentada pelas estudantes, e 8 abstenções.
Ao fim de cerca de 4 horas, a Assembleia Magna foi terminada sem que fosse dada conclusão à discussão das propostas de alteração apresentadas por vários estudantes à moção apresentada pela DG/AAC. Com o auditório a esvaziar e o quórum a aproximar-se do número mínimo de estudantes para a Magna continuar reunida, a conclusão da discussão sobre o ponto da Palestina, bem como sobre os restantes temas incluídos na ordem de trabalhos, foi adiada para a Assembleia Magna seguinte, que se vai realizar amanhã, 7 de Fevereiro, a partir das 17h no Auditório da Reitoria.
Nova Magna, nova tentativa de silenciamento
A inclusão da continuação da discussão sobre “a Guerra na Palestina” como último ponto da ordem de trabalhos (antes dos “Outros Assuntos”) faz da convocatória desta Assembleia Magna o mais recente episódio da tentativa de silenciamento deste debate.
Como diziamos antes, quem conhecer os cantos à AAC percebe facilmente o que isso significa: que o ponto muito provavelmente não vai ser discutido, ou vai ser discutido quando a maior parte dos estudantes já tiverem abandonado a sala.
Os actuais membros da Direcção Geral e da Mesa da Assembleia Magna mostram, uma e outra vez, uma enorme dose de incompetência e falta de seriedade.
Como é que se suspende uma Assembleia Magna a meio da ordem de trabalhos, interrompendo a discussão de um dos pontos, para depois convocar uma nova Magna com uma ordem de trabalhos totalmente diferente, colocando a conclusão do ponto que foi interrompido no final da ordem de trabalhos?
O que quer, afinal, a Associação Académica de Coimbra? Deixar o genocídio na Palestina para último ponto da ordem de trabalhos, Magna após Magna, porque nunca haverá quórum para levar a ordem de trabalhos até ao fim? Ou ficar a queixar-se por não conseguir discutir os outros pontos porque o genocídio na Palestina leva tempo a discutir? Por alguma razão as estudantes queriam, já em Dezembro, uma Magna de ponto único sobre a Palestina.
Só a participação dos e das estudantes pode garantir que esta importante discussão aconteça, e que o posicionamento que dela sair seja digno do legado construído ao longo da história da AAC.
O genocídio em curso na Palestina vai, sem sombra de dúvida, ficar gravado na História da Humanidade como um dos momentos mais marcantes do século XXI, e a próxima geração vai perguntar-nos o que fizemos nós para o impedir. Cabe, agora, aos e às estudantes da Universidade de Coimbra decidirem de que lado da História querem ser lembrados.