Multiplicam-se os massacres contra civis à espera de ajuda humanitária~ 10 min
Por F
Hoje completa-se o quinto mês de genocídio em Gaza. No Norte de Gaza, pessoas comuns estão não só a morrer de fome e desidratação, como a ser mortas enquanto tentam encontrar comida para as suas famílias. De forma cada vez mais frequente, os (poucos) camiões que entram em Gaza para entregar ajuda humanitária acabam a transportar os feridos. Se não forem eles mesmos bombardeados, claro.
Na quinta-feira, na Cidade de Gaza, pelo menos 117 civis desarmados foram mortos e mais de 750 foram feridos enquanto aguardavam ajuda humanitária, no que ficou conhecido como o Massacre da Farinha. Desde aí, as forças israelitas levaram a cabo pelo menos mais cinco ataques contra civis palestinianos que procuram desesperadamente obter alguma farinha.
No sábado, no mesmo local onde se deu o Massacre da Farinha, as forças de ocupação abriram fogo contra um grupo de civis que esperavam a chegada de ajuda humanitária. Uma pessoa foi morta e 26 ficaram feridas.
No domingo, em Deir al-Balah, pelo menos nove pessoas foram mortas e muitas mais feridas quando um ataque aéreo atingiu um camião de uma organização humanitária. “Este camião transportava ajuda humanitária, com voluntários civis a bordo”, conta à Al Jazeera uma testemunha que estava a caminho de um poço para ir buscar água quando “choveram mísseis [na zona], estilhaços a voar por todo o lado, pedaços de corpos pelo ar”. Vale a pena lembrar que esta cidade foi declarada pelas forças da ocupação como uma “zona segura”.
Também no domingo, as forças israelitas atacaram uma multidão que aguardava a chegada de farinha em camiões humanitários na rotunda do Kuwait, no sul da Cidade de Gaza. Segundo múltiplas fontes palestinianas, dezenas de pessoas foram mortas ou feridas. Na madrugada de terça-feira, um novo ataque nessa mesma rotunda fez vários feridos.
Ontem à noite, no mesmo local do Massacre da Farinha, um novo bombardeamento fez pelo menos 5 mortos entre civis que esperavam por ajuda humanitária.
A mentira compulsiva e os media subservientes
Como noticiámos, nas primeiras horas após o Massacre da Farinha, fontes militares israelitas confirmaram à Reuters que as tropas israelitas abriram fogo contra “várias pessoas” entre uma multidão, depois de supostamente se sentirem ameaçadas.
No entanto, Daniel Hagari, porta-voz das IDF, avançou uma nova narrativa ao final do dia. Em conferência de imprensa, chamou ao massacre um “incidente lamentável” e insinuou que “civis de Gaza foram espezinhados até à morte e feridos quando investiram contra o comboio de ajuda humanitária.”
Apesar de inicialmente afirmar que “[a]s IDF não levaram a cabo nenhum ataque contra o comboio de ajuda humanitária”, Daniel Hagari acaba por dizer que, “[a]pós os tiros de aviso que pretendiam fazer dispersar a debandada (…), vários saqueadores aproximaram-se das nossas forças, constituindo uma ameaça directa.”
Este é um exemplo perfeito da mentalidade colonial subjacente às narrativas israelitas que tentam retratar os palestinianos como um bando de selvagens que morrem sozinhos sem ser necessária qualquer intervenção das respeitáveis forças israelitas, que agem sempre em auto-defesa.
A maioria das vezes, os media ocidentais servem apenas para dar voz às mentiras propagadas pelas autoridades da ocupação. Este massacre não foi excepção, com os maiores meios de comunicação do Ocidente a lançar manchetes com expressões como “Gaza food aid deaths” (CNN), “Chaotic aid delivery turns deadly” (Washington Post) ou “the Deaths Near the Gaza Aid Convoy” (New York Times).
Fica a pergunta – como é que uns meros disparos de aviso (para o ar, supõe-se) poderiam resultar na morte de mais de uma centena de pessoas?
Maioria das vítimas foram alvejadas
As informações que chegam do terreno mostram uma realidade bem diferente da narrativa israelita. E não só as testemunhas presentes no momento do massacre, mas também fontes médicas e até a própria ONU.
Um artigo publicado pela Associated Press na sexta-feira revela que 80% dos feridos deste massacre foram alvejados, sugerindo a existência de fogo cerrado pelas tropas israelitas. Segundo Mohammed Salha, médico e director do hospital Al-Awda, dos 176 feridos atendidos neste hospital, 142 tinham ferimentos de balas e apenas 34 apresentavam lesões causadas pela debandada.
Husam Abu Safyia, médico e director do Kamal Adwan Hospital, também afirmou que a maioria dos feridos tinha ferimentos de balas na parte superior do corpo, e muitos dos mortos tinham sido baleados na cabeça, pescoço ou peito.
Segundo um porta-voz do Secretário-geral das Nações Unidas, uma equipa da ONU visitou o Hospital Al-Shifa na sexta-feira e testemunhou “um grande número de ferimentos de balas” entre as vítimas. Stephane Dujarric disse que o hospital recebeu 70 dos mortos e tratou mais de 700 feridos, dos quais 200 permaneciam internados.
Condenação internacional
O Massacre da Farinha provocou uma onda internacional de condenação, do Mundo Árabe à China, de África à América Latina. E, desta vez, até do Ocidente saíram algumas palavras de reprovação.
O Ministro dos Negócios Estrangeiros do Estado Espanhol afirmou que estes eventos “inaceitáveis” sublinham “a urgência de um cessar-fogo”. O presidente francês, Emmanuel Macron, expressou no Twitter a sua “profunda indignação” perante estes “tiroteios” e apelou ao cessar-fogo e à “verdade, justiça e respeito pela lei internacional”. Palavras que pouco valem enquanto França, e a União Europeia como um todo, continuarem a exportar armamento para Israel.
Por outro lado, o director da Human Rights Watch para Israel e a Palestina, Omar Shakir, afirmou que os recentes ataques das forças israelitas contra pessoas que procuram ajuda humanitária em Gaza representam parte de um “padrão de décadas” de abusos contra os palestinianos.
Na verdade, só durante o mês de Fevereiro, Israel já tinha atacado pelo menos um comboio humanitário e, em duas ocasiões separadas, multidões que aguardavam a chegada de ajuda, para além de ataques sistemáticos contra unidades da polícia palestiniana que acompanhavam as deslocações dos comboios humanitários.
Colômbia suspende compra de armas a Israel e apela a bloqueio mundial
Mas a reacção mais forte a este massacre veio da Colômbia. O presidente colombiano, Gustavo Petro, condenou o massacre ainda na quinta-feira, responsabilizando Netanyahu pela morte de mais de uma centena de palestinianos.
Isto chama-se genocídio e lembra o Holocausto ainda que os poderes mundiais não gostem de o reconhecer. O mundo deve bloquear Netanyahu.
Gustavo Petro, 29 de Fevereiro de 2024
Petro anunciou também a suspensão de todas as compras de armamento a Israel, uma decisão com um impacto importante dada a estreita cooperação militar que os dois países desenvolveram desde a década de 1980, quando a Colômbia adquiriu caças israelitas. Hoje em dia, todas as forças de segurança colombianas utilizam pistolas, espingardas e metralhadoras israelitas, e o exército, para além dos caças, também opera mísseis israelitas.
A Colômbia e Israel assinaram um acordo de livre comércio em 2020, quando ainda governava a direita conservadora e populista. As relações entre ambos os países, no entanto, ficaram tensas logo em Outubro, quando apenas alguns dias após o início da campanha de bombardeamentos contra Gaza, Petro acusou o Ministro da Defesa israelita, Yoav Gallant, de falar da população de Gaza com linguagem semelhante à que os Nazis usavam para falar dos judeus.
15 crianças morrem por desnutrição e desidratação
A Faixa de Gaza enfrenta a situação de fome mais crítica de que há registo na História da Humanidade, após 5 meses de um cerco total. A generalidade da população depende há várias semanas de ração animal e ervas selvagens para sobreviver, com casos de crianças a ser internadas por envenenamento nos últimos dias.
A 26 de Janeiro, imediatamente após a decisão do Tribunal Internacional de Justiça de que é plausível a acusação de genocídio submetida pela África do Sul contra Israel, funcionários israelitas soltaram acusações de que uma dúzia dos 13 mil trabalhadores da UNRWA teria alegadamente participado nos eventos de 7 de Outubro. Desde aí, apesar de até hoje não ter apresentado quaisquer provas, Israel impôs cada vez mais entraves à entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza e, em específico, às operações da UNRWA, a maior organização que presta apoio aos refugiados palestinianos.
A UNRWA fez a sua última entrega de ajuda humanitária a 23 de Janeiro. Em Janeiro, entraram em Gaza uma média de 147 camiões por dia. Entre 9 e 21 de Fevereiro de 2024, apenas 57 camiões entraram em Gaza. A situação é catastrófica, especialmente no Norte de Gaza, onde se estimam permanecerem cerca de 300 mil pessoas.
No Hospital Kamal Adwan, em pouco mais de duas semanas, já são pelo menos 15 as crianças que morreram devido a desnutrição, desidratação e falta de cuidados médicos devido à falta de combustível.
A inexistência de condições sanitárias mínimas, a destruição da rede de cuidados de saúde e a fome, que por sua vez debilita o sistema imunitário, fazem de Gaza um terreno fértil para a proliferação de doenças. Segundo o Ministério da Saúde de Gaza, cerca de um milhão de casos de doenças infecciosas foram registrados no território.
Salim Oweis, porta-voz regional da UNICEF, afirmou à Al Jazeera que ”o que está a acontecer em Gaza é um teste à consciência humana” e requer “acção internacional urgente”.
Já Michael Fakhri, Relator Especial da ONU para o Direito à Alimentação, afirmou que esta situação é um resultado das políticas implementadas de forma intencional por Israel desde 7 de Outubro e que “a única maneira de acabar/prevenir esta fome é um cessar-fogo imediato. E a única maneira de conseguir um cessar-fogo é impor sanções a Israel.”
Nota final
Como havíamos referido no último artigo que publicámos, uma das testemunhas entrevistada pela Al Jazeera no dia do Massacre da Farinha levantava dúvidas sobre a origem da ajuda humanitária, dado que nem a UNRWA nem nenhuma outra organização humanitária tinham organizado o comboio humanitário em causa.
Um artigo publicado pelo New York Times no sábado revela que o comboio humanitário do Massacre da Farinha não foi organizado por nenhuma destas organizações, mas pelas próprias forças israelitas, alegadamente em colaboração com alguns empresários palestinianos.
Resta saber porque é que Israel haveria de bloquear o acesso de ajuda humanitária à Faixa de Gaza durante mais de um mês, para depois organizar os seus próprios comboios humanitários que, por sua vez, são atacados pelas suas próprias forças.
Será por estarem a cometer deliberadamente um genocídio?