Haiti // Um estado falhado em guerra civil: como chegámos até aqui?~ 10 min

Por Nguyen

O Haiti tem estado nas notícias pelas piores razões – o país está imerso numa espécie de guerra entre um estado diminuto e milícias de gangues. Nos noticiários há muita gritaria sobre como chegámos a este ponto, como pode o estado ter falhado?

As perguntas ficam sempre por responder, sobrando para o público apenas respostas evasivas, parciais e pouco esclarecedoras. Fica implícito que o Estado é mau e falha. E, como são de pele escura, só conhecem a violência. Como o Haiti nunca foi comunista, poupam-nos à usual ladainha de que todos os estados falhados são comunistas e, ao mesmo tempo que falham redondamente, estão quase, quase, a dominar o mundo. Os e as jornalistas evitam tudo o que seria útil para realmente entender o que se passa, e porquê.

A 11 de Março, enquanto se encontrava numa visita ao Quénia para tentar assegurar uma força multi-nacional para intervir no Haiti, Ariel Henry, o primeiro-ministro haitiano, demitiu-se devido aos protestos da população e à guerra civil. Era uma exigência da população e dos grupos envolvidos no conflito, que aproveitaram a sua ausência para tomar a capital e boa parte do país. Henry tomou o poder em 2021, após o assassinato do anterior presidente, prometendo realizar eleições em breve, eleições essas que nunca aconteceram. Este ano, após o início dos protestos contra o seu governo, Henry prometeu eleições para 2025, o que incendiou ainda mais os protestos e levou à presente guerra aberta entre as milícias e as forças governamentais. 

A 7 de Julho de 2021, Jovenel Moise, o anterior presidente do Haiti, foi assassinado, em Port-au-Prince. Não se pode dizer que fosse um presidente muito popular, tendo enfrentado protestos sérios desde 2019 devido a casos de corrupção. Depois de ter suspendido o parlamento e governar sozinho desde 2020, não quis cumprir o tempo de mandato, sendo acusado de querer prolongar indevidamente a sua estadia no poder.

O assassinato de Moise terá sido perpretado por um grupo de mercenários colombianos e membros de forças de elite da polícia haitiana. Vários oligarcas haitianos e dos EUA parecem ter estado envolvidos no assassinato, incluindo o primeiro-ministro Ariel Henry. Pelo menos 5 juízes desistiram de investigar e julgar o caso do assassinato, muito provavelmente devido a pressões e ameaças. 

O julgamento no Haiti chegou a implicar a viúva de Moise, Martine Moise, como uma das responsáveis pelo assassinato, apesar de esta ter ficado gravemente ferida durante o ataque que assassinou Jovenel. Martine acusou Henry de usar o julgamento para eliminar rivais políticos. Paralelamente, nos EUA, decorreu um outro julgamento sobre o assassinato, onde 11 pessoas foram implicadas no assassinato, tendo-se provado que o mesmo tinha sido parcialmente planeado no sul da Flórida, e envolvia cidadãos norte-americanos provenientes da diáspora Haitiana. 

Da primeira revolta de escravos a inferno neoliberal

No final do século XVIII, Saint Domingue era considerada não só a pérola do Império colonial francês, mas a colónia mais rica e próspera das Caraíbas. Em 1789, 60% do café mundial e 40% do açúcar importado por França e pelo Reino Unido eram produzidos em  Saint Domingue, um território em que os escravos africanos representavam cerca de 80% da população.

Em 1791, foi palco da primeira revolta de escravos bem-sucedida do mundo, culminando finalmente na independência de Saint Domingue, em 1804, que passou a chamar-se Haiti, de acordo com o nome ameríndio da ilha Hispaniola. Desde então, o Haiti foi repetidamente castigado por diferentes potências ocidentais por se ter tornado a primeira república negra livre e o primeiro estado independente das Caraíbas.

Desde 1958, o Haiti foi vítima de 27 intervenções do Fundo Monetário Internacional (FMI). Com tanto especialista, programa de privatização, desregulação, minimização do estado, etc, seria de esperar que o Haiti fosse o país mais rico do mundo, ou algo do género. Ao contrário do seu objectivo declarado, estas políticas trouxeram ao Haiti tudo menos prosperidade e estabilidade. Como é óbvio, as intervenções financeiras do FMI visam aumentar a dependência dos países intervencionados, reduzir a produção económica, possibilitar a aquisição de bens e serviços por empresas multinacionais e aumentar a pobreza e disparidade económica da população – tudo para aumentar os lucros dos credores, e com listas de sucessos vários.

Só a título de exemplo, ficam aqui alguns dos planos fantásticos que empobreceram o Haiti:

  • Na década de 1980, o Haiti era quase auto-suficiente em termos de produção agrícola. Com a entrada das empresas do agronegócio norte-americanas, nomeadamente a ERLY, o país passou a ser um importador de comida. Em 1986 e 1995, o FMI forçou os governos Haitianos a baixar as tarifas sobre as importações alimentares, levando ainda mais agricultores locais à falência. 
  • Em 2013, a Haiti Originale, uma empresa norte-americana sediada na Flórida, ajudada pela gigante Dole, iniciou um projecto de exploração das plantações de banana no Haiti, com o intuito de usar a produção para exportação e aumentar os seus lucros, aumentando igualmente a pobreza no Haiti. 
  • Moise continuou com este plano agrícola, ajudando a Agritrans, uma empresa de que antes tinha sido director, a obter terrenos ilegalmente, destruir as casas e plantações de pequenos agricultores e forçar a deslocação de populações. Tudo para aumentar a exportação de bananas e o lucro da Agritrans. 
  • A privatização da rede de electricidade levou a 94 milhões de dólares em lucros indevidos por parte das eléctricas norte-americanas, só entre 2019 e 2020. Empresas como a General Electric, EarthSpark International e 10Power estão envolvidas na rede elétrica Haitiana. As falhas de energia e a inflação dos preços são problemas recorrentes no Haiti, que a privatização não resolveu, nem resolve. 
  • Após o terrível terremoto de 2011, mais de 500 mil pessoas ficaram sem casa em Port-au-Prince. Apesar de se juntarem milhões de dólares para reconstruir a cidade, muitos projectos demoraram imenso tempo a implementar, ou ficaram pela gaveta. Notória foi a intervenção da Cruz Vermelha dos EUA, que reuniu 500 mil milhões de dólares, mas destes usou apenas 170 milhões na construção de casas e abrigos – no total, construiram 700 casas… 
  • Já para não falar das intervenções militares dos EUA; dos 19 anos de ocupação norte-americana, entre 1915 e 1934;  e do seu apoio a ditaduras sanguinárias como a da dinastia Duvalier, que esteve no poder entre 1957 e 1986. Em 1991, Aristide, o primeiro presidente eleito após a dinastia Duvelier, foi deposto por um golpe militar depois de apenas 8 meses em funções. Em 1994, os EUA enviaram 20 mil soldados para voltar a colocar Aristide no poder, sob a condição de este pôr em prática programas de austeridade do FMI. 

Os gangues

Quem são? Como se financiam? Quem os lidera? Onde obtêm as armas? São perguntas que ficam por responder com demasiada frequência nos noticiários. Desde 2020 que, pelo menos, dois grupos armados se degladiam pelo controlo do Haiti, o G-9 e o G-Pep. Posteriormente mais grupos se juntaram à luta, às vezes aliando-se a estes dois, outras vezes actuando sozinhos. A maioria tem origem em grupos paramilitares e milícias ligadas ao governo, ou à oposição. 

Os grupos paramilitares remontam a 1959, quando “Papa Doc” Duvalier criou os Tonton Macoute, caracterizados pela brutalidade, crimes, violações e uso do Vodu para massacrar e intimidar a população. Os Tonton Macoute foram treinados pelos militares dos EUA e pela CIA, tendo os EUA dado asilo a estes criminosos depois da deposição da ditadura. O local de asilo para algumas das figuras mais proeminentes foi a Flórida. Os que permaneceram no Haiti terão formado, ou ajudado a criar, a FRAPH, um grupo político e paramilitar igualmente brutal, e que recorreu ao crime como forma de financiamento. As ligações criminosas estendem-se pela República Dominicana, Nova Iorque, Montreal, entre outras. Seguramente será só mais uma infeliz coincidência para o estado da Flórida que gangues haitianos e ex-Toton Macoute coabitam na mesma cidade.

O G-9 está ligado ao anterior  presidente Moise, tendo participado de forma armada no seu funeral, e conta com a liderança de Jimmy “Barbecue” Chérizier, um polícia. Foram acarinhadas pelo anterior regime com a intenção de servir como grupo paramilitar para esmagar violentamente a oposição. O G-Pep tem fortes ligações à oposição, ou melhor, ao movimento Lavalas, de Aristide. 

No bairro rico de Canape Vert, a população local e a polícia organizam o seu próprio grupo paramilitar, particularmente brutal e violento. Conhecidos como e apresentados na imprensa ocidental como uma “população farta de criminalidade”, não são raros os artigos de simpatia para com este grupo paramilitar conhecido como Bwa Kale. O grupo é, na realidade, parte das forças de apoio ao ex-primeiro-ministro Henry. O grupo é conhecido pela tortura e linchamentos públicos de membros de outros grupos paramilitares, geralmente provenientes dos bairros de lata na periferia da capital Port-au-Prince. O apoio da imprensa Ocidental a grupos genocidas e extremamente violentos começa a ser mais a norma, do que a excepção. O nome do grupo, Bwa Kale, descreve uma prática que consiste em amarrar um prisioneiro, regá-lo com combustível enquanto lhe é colocado um pneu no pescoço. Depois é deitado fogo à vítima. O pneu impede ou diminui a inalação dos fumos da queima, que permitiria um mais rápido falecimento da vítima, mas isso estragava a diversão pública e sádica da “justiça popular”, como lhe chamam os pasquins Ocidentais. 

O tráfico de droga e outras actividades criminais servem como forma de financiamento para todas as milícias envolvidas, incluíndo a polícia em funções governamentais e a que participa nas milícias das forças da oposição. Este dinheiro é usado para financiar as actividades das milícias, incluindo comprar armas. As milícias apresentam um arsenal sério de armas ligeiras, muitas delas de origem militar, e até de drones. A origem das armas, como não poderia deixar de ser, é os EUA. E, por mais uma infeliz coincidência, o estado da Flórida parece estar no centro deste tráfico. 

Guerra civil

Temos então um país em guerra civil, com várias milícias politizadas, ou partidos militarizados, a lutar pelo poder. O crime e tráficos vários são usados como financiamento, mas são só uma parte do problema. As dezenas de intervenções do FMI e a desregulação económica e financeira, acompanhada da atracção de multinacionais internacionais, criaram um estado diminuto, um “paraíso” neo-liberal e capitalista, que é um filme de terror diário para a população. A juntar a estes problemas, as intervenções e interferência constante dos EUA na política do país originam esta situação caótica e sem fim à vista.

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