Relatora Especial da ONU silenciada sob acusações de “anti-semitismo”~ 6 min
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Por F
O presidente da Universidade Livre de Berlim anunciou ontem o cancelamento da conferência “Conditions of Life Calculated to Destroy: Legal and Forensic Perspectives on the Ongoing Gaza Genocide”, agendada para a próxima quarta-feira. Francesca Albanese, a Relatora Especial da ONU para os Territórios Palestinianos ocupados, tinha sido convidada a falar no evento ao lado do arquitecto israelita Eyal Weizman, fundador da Forensic Architecture.
Francesca Albanese, na posição de Relatora Especial da ONU para os Territórios Palestinianos ocupados, tem sido incansável na defesa dos direitos do povo palestiniano, consagrados no direito internacional, e na denúncia dos crimes da ocupação israelita, documentados por diferentes agências da ONU. A Forensic Architecture, por sua vez, é um grupo de pesquisa multidisciplinar, sediado na Universidade de Londres, que usa técnicas e tecnologias da arquitectura para investigar casos de violência de estado e violações de direitos humanos. O grupo investigou vários crimes perpetrados durante o genocídio em curso, entre eles o assassinato de Hind Rajab e o ataque ao Hospital Al-Ahli, em que morreram perto de quinhentas pessoas.
A decisão veio no seguimento do cancelamento de um outro evento com Albanese numa universidade de Munique, e de pressões por parte do presidente da câmara de Berlim, dos media alemães e de outras figuras e organizações influentes. A Universidade Livre de Berlim justificou a decisão com “a presente polarização e a imprevisibilidade da situação de segurança”, concedendo aos professores organizadores a oportunidade de realizar a sessão num formato online.
“Anti-semitismo”
Nos últimos dias, foi levada a cabo na Alemanha uma agressiva e concertada campanha de difamação contra Francesca Albanese, na qual um grande número de meios de comunicação alemães participaram activamente.
Na terça-feira, o presidente da câmara municipal de Berlim, Kai Wegner, apelou à universidade para “cancelar o evento imediatamente e enviar um sinal claro contra o anti-semitismo”. Antes disso, o embaixador israelita na Alemanha tinha enviado uma carta ao presidente da universidade em que afirmava que o evento seria “uma desgraça para toda a comunidade académica, uma desgraça para a cidade de Berlim”.
Um artigo, publicado esta terça-feira pelo Bild, afirma que o anúncio da conferência provocou “um grande horror em Berlim”, dando palco a estas e outras figuras para proferir as suas barbaridades. O Bild justifica as acusações de anti-semitismo contra Albanese com “o seu constante ódio a Israel e a banalização dos terroristas do Hamas” e com o facto de esta “comparar o líder do governo israelita ao ditador nazi Adolf Hitler”.
O Munich Eye, por sua vez, afirma que o título do evento provocou “indignação”, pois “muitos consideram-no uma postura provocadora que põe em causa as complexidades do conflito israelo-palestiniano”. O jornal também baseia as suas acusações de anti-semitismo contra Weizman, fundador e director da Forensic Architecture, com o facto de este ter “classificado as acções israelitas em Gaza como genocídio”, enquanto o Bild afirma que Weizman é um “defensor da campanha anti-semita do BDS”.
Um evento na Universidade RWTH, em Aachen, para o qual a Forensic Architecture tinha sido convidada, foi recentemente cancelado por ordem de um tribunal alemão.
Liberdade académica e a “segurança dos estudantes judeus”
O presidente da Universidade Livre de Berlim, em declarações citadas pelo Morgen Post, defendeu a liberdade académica: “Onde, se não numa universidade, é que debates controversos podem ter lugar, e pontos de vista podem ser ouvidos e classificados cientificamente? A liberdade académica está constitucionalmente protegida”. No entanto, logo a seguir, afirma que “a influência política e pública e a polarização crescente prejudicam a ciência”. O Morgen Post, que também aprova o cancelamento da conferência, afirma que, segundo a universidade, “as universidades devem garantir que eventos científicos tenham lugar num contexto que permita uma troca objectiva”.
Ina Czyborra, Senador da Ciência no senado da universidade, foi citado pelo Berliner Zeitung: “As declarações da Sra. Albanese cumprem todos os critérios de anti-semitismo, e questiono se a segurança dos estudantes judeus pode ser garantida num evento planeado desta maneira”. Czyborra é do SPD, supostamente o partido de centro-esquerda alemão.
E até o partido Die Linke (A Esquerda) participa no circo. Tobias Schulze, co-presidente do grupo parlamentar do Die Linke no parlamento do estado de Berlim, defendeu a “liberdade académica” e a “autonomia” da universidade para decidir sobre o evento, mas classificou-o como um “caso-limite”.
Um perigoso precedente
Francesca Albanese tinha sido também convidada para falar num evento na Universidade Ludwig-Maximilians, em Munique, agendado para 16 de Fevereiro, que já tinha sido cancelado no início desta semana.
Uma petição lançada na terça-feira exige à universidade que reverta a decisão, e conta já com as assinaturas de mais de quatro dezenas de professores, dezenas de jornalistas, juízes e advogados, e centenas de estudantes, investigadores e trabalhadores da universidade. A petição afirma que “o cancelamento abre um precedente perigoso para as universidades – um precedente em que a rejeição de advogados internacionais de direitos humanos e de representantes da ONU se torna uma realidade e pode ser repetida”.
Francesca Albanese foi convidada a falar no parlamento holandês durante o dia de hoje, um convite que também esteve sob ataque de organizações pró-sionistas.
1984
Na Alemanha “democrática” do século XXI, é normal enviar armamento para o regime sionista usar no genocídio em curso, mas não se pode chamar “genocídio” ao genocídio. Tampouco se pode defender que seja cumprido o direito internacional criado no pós-Segunda Guerra Mundial com o objectivo de evitar que um cenário semelhante se repita.
A bem do “bem-estar dos estudantes judeus”, da “objectividade” e da “segurança”, proíbem-se eventos em que se fala da Palestina, tudo isto enquanto se proferem palavras vazias sobre a “liberdade académica”.
Este silenciamento da Relatora Especial da ONU, a par com o aprisionamento do jornalista Ali Abunimah pelas autoridades suíças, as acções das autoridades britânicas e austríacas aos jornalistas Richard Medhurst e Asa Winstanley, a proibição imposta pelas autoridades europeias à entrada do cirurgião Ghassen Abu Sitta no espaço Schengen e os interrogatórios, à chegada aos EUA, ao historiador israelita Ilan Pappé e ao ex-inspector de armas da ONU Scott Ritter, tornam evidente que a única liberdade que há no Ocidente é a de falar dos temas que o Império permite.
Por outro lado, o recente cancelamento do resultado das eleições na Roménia mostra que a democracia é uma figura de estilo que parece existir na prática, mas que será cancelada a qualquer momento em que os resultados não sejam os desejados.
Tudo isto faz lembrar o romance de George Orwell e os três lemas do Partido:
Guerra é paz.
Liberdade é escravidão.
Ignorância é força.
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