Apagão na Península: cobertura mediática, hipocrisia e terrorismo~ 7 min

Por F

Na manhã de ontem, pelas 11h30, um apagão atingiu a Península Ibérica e outras partes da Europa. Desde aí, sem electricidade para alimentar a maior parte dos dispositivos e com as telecomunicações fortemente afectadas, foi a rádio que serviu como principal meio de “informação”.

Quem esteve à escuta da rádio portuguesa recebeu relatos e entrevistas trazidos até nós por repórteres um pouco por todo o país. Soubemos dos passageiros que ficaram presos em carruagens nos túneis do metro; do caos nas redes de autocarros devido à anormal afluência; dos transtornos causados aos passageiros que ficaram retidos no aeroporto de Lisboa; dos hospitais a funcionar a geradores, tendo sido cancelados todos os serviços não essenciais; das estações de comboios que, no Estado Espanhol, foram abertas para albergar quem não conseguiu voltar a casa; das pessoas entrevistadas à porta de supermercados fechados, sem comida ou água em casa. 

O que é que se pode concluir de tudo isto?

Que, mesmo em circunstâncias extremamente adversas, os media (e especialmente a rádio) conseguem encontrar formas de continuar a funcionar e, se quiserem, cobrir em detalhe um determinado acontecimento, ir aos locais, falar com as pessoas, dar voz às suas preocupações e sofrimentos, humanizando-as em discursos emocionados.

Hipocrisia

Num contraste gritante, o que experienciámos ontem durante algumas horas é uma pequena fracção do que 2 milhões de pessoas em Gaza vivem há mais de ano e meio, mas esses não merecem discursos emocionados nem se vê tempo dedicado aos transtornos que lhes são causados pela cumplicidade das nossas sociedades.

Para Gaza, quando não há silêncio, há desumanização.

Mesmo que, lá, não existam autocarros para substituir os comboios, nem estações para albergar deslocados, nem supermercados onde ir quando falta água em casa, nem casas. Lá, onde até hospitais, centros de distribuição de farinha da UNRWA e furos e estações de dessalinização de água são bombardeados.

Sim, é impossível enviar repórteres para Gaza. A verdade é que estas rádios, que ontem enviaram repórteres a várias cidades do país, não foram capazes de enviar repórteres às universidades quando, de norte a sul, estas foram palco de vários casos de silenciamento que negaram a centenas de estudantes os seus direitos de expressão e reunião – esses direitos conquistados a tanto custo após a queda do Estado Novo e que tantos milhares de pessoas celebraram há dias.

Nenhuma destas rádios enviou ninguém para perguntar a estas estudantes o que se estava a passar, como estavam a lidar com a situação, nem o que iam fazer quanto a isso.

O destino destes e destas estudantes foi, também, o esquecimento – graças ao silêncio ensurdecedor não só dos media, mas também dos partidos, da maioria das associações de estudantes, da restante comunidade universitária e da sociedade em geral.

Terrorismo

Até à hora de publicação deste artigo, as autoridades ainda não divulgaram conclusões finais sobre a razão deste súbito e gigantesco apagão que afectou dezenas de milhões de pessoas. Embora, a certa altura, tenham circulado na rádio declarações que atribuíam o apagão a um fenómeno atmosférico raro, os governos acabaram o dia a dizer que não faziam ideia do que terá estado na origem dos eventos de ontem, e assim continua hoje.

Segundo o Público, as autoridades espanholas explicaram que o apagão aconteceu depois de “desaparecerem subitamente” da rede, durante cinco segundos, cerca de 60% da energia em consumo, equivalente a 15 gigawatts de energia. A hipótese de um ciberataque está a ser descartada pelas autoridades, mas ainda não se sabe o que provocou esse desaparecimento súbito.

No entanto, não será de admirar se acabarem a dizer que foi a China ou a eterna inimiga Rússia. Quem sabe, as culpas poderão até ser atribuídas ao Irão ou ao Hezbollah. Em qualquer caso, a acusação virá invariavelmente acompanhada da habitual palavra: terrorismo.

Na verdade, os grandes terroristas aqui somos nós. Se fazer colapsar a rede eléctrica da península ibérica durante meio dia é terrorismo, o que é que podemos chamar a um ano e meio de bloqueio, ora total ora quase total, à entrada em Gaza de combustível, electricidade, água, medicamentos e outros bens essenciais?

O que chamar à explosão de milhares de pagers que mataram e feriram milhares de mulheres, homens e crianças no Líbano, só para ser apresentada pelos nossos media como um “feito impressionante” dos serviços secretos israelitas? O que chamar aos nossos governos e instituições que continuam, ao dia de hoje, a ter um acordo comercial com o regime sionista, e fecharam há poucos meses um novo contrato para adquirir mais um drone a empresas israelitas, daqueles que são usados no Mediterrâneo para auxiliar ao afogamento de refugiados?

Sim, por toda a Europa há manifestações semanalmente a pedir um cessar-fogo em Gaza. Mas, quando explodiram os pagers, quantas manifestações houve para denunciar o maior ataque terrorista da História recente? Quando os nossos governos, universidades, portos e mil esferas da nossa sociedade continuam a alimentar o genocídio em curso, quanta raiva explode nas ruas?

Sim, o mundo nunca viveu um período com tanto terrorismo. Mas fomos nós que o criámos, financiámos, armámos e normalizámos.

False flag ou inside job

Além das causas naturais e do “ataque terrorista” por potências inimigas, há dois outros cenários possíveis para explicar os eventos do dia de ontem.

O primeiro é que este apagão tenha sido o resultado do teste de algum tipo de tecnologia desconhecida que os EUA, com ou sem conhecimento das autoridades europeias e nacionais, queriam experimentar – e aproveitar também para ver qual seria a reacção da população a um evento destes. Afinal, não seria a primeira vez que os EUA atacariam infraestrutura dos seus aliados europeus e depois atiravam a culpa para o seu bode expiatório preferido – veja-se o caso do NordStream, um dos maiores casos de terrorismo ambiental dos últimos anos. 

Por último, isto pode ter sido tudo orquestrado pelo Ocidente com o intuito de responsabilizar algum destes arqui-inimigos, acelerar a retórica militarista e justificar um ataque contra o inimigo que tiver sido seleccionado.

Uma história mal contada

Se nos fiássemos nos nossos media, acharíamos que estes eventos afectaram apenas a Península Ibérica e, de forma breve, algumas zonas do sul de França – mas a realidade parece bem mais complexa.

O Euro Weekly News, o maior jornal de língua inglesa no Estado Espanhol, afirma que o apagão também foi sentido, embora por períodos mais curtos, em partes da Alemanha e da Itália. Andorra ficou igualmente sem energia durante parte do dia de ontem.

A SIC Notícias, um quarto de hora após o início do apagão, afirmava em nota de rodapé que tinha sido “registado [um] corte de electricidade a nível europeu”, apenas para depois a narrativa ser mudada para um “apagão na península”.

Os efeitos deste apagão sentiram-se até na Gronelândia, onde várias comunidades ficaram sem serviços de telefone e internet – algo que só hoje foi resolvido. O mesmo aconteceu em Marrocos.

Justiça poética

Independentemente de este apagão ter tido causas naturais ou humanas, acaba por ser um evento que traz consigo uma certa justiça poética – e, se tivesse durado alguns dias em vez de apenas algumas horas, teríamos tido realmente a oportunidade de sentir na pele, aqui no centro do Império, um pouco do terrorismo que impômos sobre Gaza e um sem-número de outros territórios pelo mundo fora.

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