Iémen // A guerra contra quem tenta travar o genocídio~ 16 min
Por Guilhotina.info
Na madrugada de sexta-feira, os Estados Unidos da América e o Reino Unido deram início a uma campanha de bombardeamentos contra o Iémen. O único país do mundo que está a fazer tudo ao seu alcance para impedir a continuação do genocídio do povo palestiniano, cumprindo com as suas obrigações perante a Convenção contra o Genocídio, de 1948, torna-se novamente vítima do imperialismo ocidental.
Nas últimas 72 horas, cerca de uma centena de bombardeamentos foram levados a cabo pelas forças britânicas e norte-americanas a pretexto da defesa do comércio marítimo e da sacrossanta “economia global”. A abertura desta nova frente de guerra no Médio Oriente, após repetidas ameaças lançadas contra o Iémen pelo Ocidente, é mais um passo que coloca a região e o mundo à beira de um conflito militar generalizado.
A hipocrisia ocidental
A 3 de Janeiro, os EUA, o Reino Unido e outros 10 governos do Norte Global lançaram um comunicado conjunto afirmando que “os ataques dos Houthis no Mar Vermelho são ilegais, inaceitáveis e profundamente desestabilizadores”, sendo “uma ameaça directa à liberdade de navegação que serve de base ao comércio global”.
O comunicado continua, afirmando que estes ataques “ameaçam vidas inocentes em todo o mundo e representam um problema internacional significativo que exige acção colectiva”. Resta saber se a Palestina também existe no mesmo mundo onde ameaças a vidas inocentes exigem acção, ou se porventura está localizada em Marte. O comunicado termina assim:
“Os Houthis carregarão a responsabilidade pelas consequências [das suas acções] (…) Permanecemos comprometidos com a ordem internacional baseada em regras e determinados a responsabilizar os protagonistas malignos por ataques e capturas ilegais.”
Os contornos das posições do Ocidente tornam-se especialmente macabros quando palavras como estas, tão peremptórias na defesa da “liberdade de navegação” e da “economia global”, são confrontadas com a cumplicidade das nações ocidentais com o genocídio em curso na Palestina e, no caso do Reino Unido e dos EUA, a colaboração activa através do constante envio de armamento durante os últimos 3 meses.
Os estados signatários da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, estão obrigados não só a não cometer genocídio, mas também a prevenir que este aconteça onde quer que seja, a puni-lo e a garantir sanções penais eficazes que recaiam sobre as pessoas culpadas de genocídio.
Os EUA e todos os estados europeus são signatários da Convenção, e por isso estão em falta para com as obrigações que assumiram para impedir a repetição de um cenário como o do Holocausto. Preferem bombardear um país que se mantém inflexível, povo e governo, na defesa do povo palestiniano, em cumprimento das suas obrigações perante a referida Convenção.
Os ataques dos malvados Houthis
A 19 de Novembro deu-se o primeiro ataque dos Houthis contra uma embarcação que navegava pelo Mar Vermelho, acompanhado de um comunicado oficial do governo iemenita em Sanaa, em que foi anunciado que, a partir desse momento, seriam considerados alvos legítimos todas as embarcações propriedade de israelitas, operadas por empresas israelitas ou com origem em ou destino a portos israelitas.
Desde então, os Houthis levaram a cabo dezenas de ataques contra navios que tentavam atravessar o Mar Vermelho. Uma só embarcação continua apreendida pelas forças iemenitas, e apenas meia dúzia foi atingida e danificada.
Os ataques têm um único objectivo – pressionar Israel para travar o genocídio em curso na Faixa de Gaza. Segundo os Houthis, estes ataques pararão no momento em que Israel parar a sua agressão contra a população de Gaza.
A frequência dos ataques tornou insegura a navegação no Mar Vermelho, levando algumas das maiores empresas de transporte marítimo a suspender a utilização desta rota e provocando uma drástica queda no número de embarcações que a usam. Segundo a Reuters, desde Novembro, mais de 2000 navios foram forçados a alterar o seu curso e utilizar rotas alternativas. Os preços dos seguros dos navios, bem como os custos e o tempo de transporte, estão a aumentar pela interdição de uso da rota do Mar Vermelho.
Os ataques têm igualmente tido um impacto importante na economia israelita. O único porto israelita no sul da Palestina ocupada, na cidade de Eilat, está a ser fortemente prejudicado, tendo-se registado uma forte redução na actividade e uma perda de rendimentos de aproximadamente 80%.
É relevante notar que, até ao momento, nenhum navio mercante foi afundado pelos ataques dos Houthis, nem estes fizeram quaisquer vítimas mortais.
As únicas vítimas mortais deste conflito foram registadas a 31 de Dezembro, quando helicópteros norte-americanos dispararam contra barcos iemenitas que haviam tentado abordar um navio porta-contentores. Três destes barcos foram afundados, junto com as suas tripulações. 10 membros das forças Houthis foram mortos.
Em contraste, em Gaza, já há mais de 30 mil pessoas mortas ou desaparecidas debaixo dos escombros. Israel mantém um cerco que impede a chegada de bens essenciais à população – água, alimentos, medicamentos, eletricidade, produtos de higiene, etc. Os crimes do apartheid Israelita deixam 2 milhões de pessoas à espera que a morte chegue, seja pela fome, pela sede, pelos bombardeamentos ou pelas doenças.
Se é certo que os ataques contra embarcações civis são ilegais de acordo com o direito internacional, é também óbvio que são um “crime” cuja gravidade é incomparável com o maior de todos os crimes – o crime de Genocídio. Não sabemos o que dirão os tribunais internacionais, mas estamos seguros de que estes ataques, ainda que possam ser ilegais, são definitivamente éticos e parecem estar em conformidade com a própria Convenção contra o Genocídio.
Uma década de guerra no Iémen: Quem são os Houthis?
O movimento Ansar Allah, mais conhecido como Houthis, é o governo de facto do Iémen, controlando a capital e as regiões mais populosas do país. Compreender a história do Iémen é compreender a história de dois países tão distintos quanto a sua grande diversidade étnica e religiosa e que, fruto de uma unificação forçada em 1990, levaram o território ao conflito armado.
Explorar os acontecimentos no Iémen entre 1990 e 2015, um período marcado por sucessivos momentos de conflito e reconciliação, assim como o percurso do movimento Houthi desde a sua fundação, requereria um artigo completo. Já o fizemos, em 2018, quando a intervenção saudita ainda estava em curso perante o silêncio e a cumplicidade dos governos e media ocidentais:
Desde 2015, o Iémen esteve imerso numa sangrenta guerra em que os Houthis e outros grupos iemenitas enfrentaram forças da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes e dos seus proxies locais, com apoio dos Estados Unidos e dos seus aliados ocidentais. A par da operação militar, a Arábia Saudita também iniciou um bloqueio assassino que impedia a entrada de qualquer barco nos portos controlados pelas forças Houthis, incluindo navios que transportassem alimentos ou medicamentos. Um acto de punição colectiva que espalhou fome e doenças entre a população civil.
A invasão denominada Operação Tempestade Decisiva congregou 9 países liderados pela Arábia Saudita, centenas de milhares de tropas, o apoio declarado dos EUA e outras potências ocidentais, equipamento militar moderno e largos milhões de dólares. Apesar dos meios ao seu dispôr, a operação foi um falhanço completo em termos militares, com a resistência iémenita a conseguir infligir danos e até atacar alvos dentro do território saudita.
Como explicámos num artigo publicado em 2019:
Em 2015, incapaz de obter uma vitória militar apesar dos seus recursos vastamente superiores, a Arábia Saudita iniciou um bloqueio militar que, em 2017, deixou 14,4 milhões de pessoas com fome. Este ano, o número de pessoas afectadas pela fome aumentou para 15,9 milhões. Também em 2017, uma epidemia de cólera atingiu 400 mil pessoas, enfraquecidas pela falta de nutrição e cuidados médicos causada pelo bloqueio saudita, epidemia essa que continua até aos dias de hoje e que se estima ter afectado 2 milhões de pessoas.
Os números de mortos oficiais da guerra, fome e doença são extremamente conservadores, com as agências humanitárias a argumentarem que não dispõem de meios no terreno para contabilizar vítimas. Se tomarmos em conta o facto de que a taxa de mortalidade da cólera não tratada é de 50 a 60%, podemos facilmente garantir que dezenas de milhares de pessoas perderam a vida. Muitas dessas são crianças, mais violentamente atingidas pela fome e doença.
Seria demasiado exaustivo listar todas as atrocidades causadas pela intervenção militar Saudita, mas ficam alguns exemplos: atacar navios com refugiados, bombardear mercados, bombardear escolas, bombardear autocarros escolares, bombardear hospitais, entre outros crimes de guerra.
Artigo completo aqui
Embora os media tenham tentado muito simplisticamente resumir a guerra no Iémen a uma questão religiosa de xiitas contra sunitas ou a uma guerra do “legítimo governo” do Iémen contra os Houthis, a complexidade no terreno demonstra uma vez mais a criminosa doutrina da “guerra contra o terror”.
Com esta guerra, milhões de pessoas, de crianças a idosos, foram deixados a morrer à fome, de doenças evitáveis e nos escombros de uma guerra silenciosa. O Iémen tornou-se mais um entre os tantos países esquecidos pelo mundo e entregues à miséria. Milhões de pessoas foram abandonadas pela comunicação social ocidental, que omitiu uma campanha genocida patrocinada pelo armamento e apoio logístico do Ocidente.
Mas nem 7 anos de barbárie foram suficientes para subjugar o povo iemenita. Em Abril de 2023, no seguimento da normalização das relações diplomáticas entre a Arábia Saudita e o Irão, alcançada através da mediação da China, foi anunciado o fim da guerra no Iémen, com a Arábia Saudita a aceitar que a intervenção militar nunca conseguiria atingir os seus objectivos.
Um povo unido e mobilizado em apoio aos Houthis e à Palestina
É precisamente esta experiência, de resistir anos sem fim a um bloqueio criminoso e aos bombardeamentos indiscriminados dos aliados do Ocidente, que explica a determinação do povo do Iémen em manter-se ao lado do povo palestiniano, mesmo apesar de todas as ameaças deste Ocidente que se acha dono e senhor do mundo.
Desde Outubro, as ruas de Sanaa, a capital do Iémen, têm sido repetidamente inundadas por centenas de milhares de pessoas, quando não milhões, em apoio à Palestina e às acções do governo e das forças armadas iemenitas contra Israel.
A mais recente destas manifestações teve lugar esta sexta-feira – apenas algumas horas depois dos primeiros bombardeamentos, meio milhão de pessoas saiu às ruas de Sanaa para reiterar o seu apoio ao governo iemenita e à Palestina, seja qual for o custo. Na capital do Iémen ecoou um cântico que provocará um arrepio a qualquer pessoa com uma réstia de humanidade – “Não queremos saber, destruam-nos, lancem fogo sobre eles, façam desta uma Guerra Mundial!”
A mentalidade imperialista e colonial que abre caminho à escalada
A caracterização desta operação por Biden, num comunicado publicado no momento em que começavam os bombardeamentos contra o Iémen, como uma “acção defensiva” não podia pôr mais em evidência o ridículo da mentalidade dos estados ocidentais. E não é só pelo facto de as nações que escolheram iniciar uma nova guerra se encontrarem a milhares de quilómetros de distância, mas também por os próprios países vizinhos do Iémen condenarem os ataques e apelarem a evitar uma escalada e a generalização do conflito no Médio Oriente.
Logo na sexta-feira, os Ministérios dos Negócios Estrangeiros de países como o Egipto, a Omã, o Kuwait e até a própria Arábia Saudita (certamente preocupada por as suas refinarias estarem dentro do alcance dos mísseis do Iémen) expressaram a sua preocupação ante o início da campanha de bombardeamentos e apelando à desescalada.
Em comunicado, o Kuwait afirmou que evitar uma escalada do conflito é a única forma de assegurar a liberdade de navegação no Mar Vermelho, enquanto a Omã e o Egipto foram mais longe, apontando a resolução da questão palestiniana como o único caminho para conseguir segurança e estabilidade em toda a região. A Omã anunciou também que encerrou o espaço aéreo aos aviões norte-americanos e britânicos que pretendam bombardear o Iémen.
Não saberão melhor os países da região como defender os seus interesses e manter a sua estabilidade, do que um bando de assassinos que decidem começar guerras do conforto dos seus escritórios em Londres e Washington?
É esta mesma mentalidade que dá azo à manutenção da presença norte-americana no Iraque e na Síria, apesar dos repetidos pedidos dos governos destes dois países para a sua retirada. O mais recente destes pedidos foi feito pelo governo iraquiano a 10 de Janeiro, depois de as forças norte-americanas terem assassinado mais um importante comandante das Forças de Mobilização Populares (PMU), que fazem parte das forças armadas iraquianas.
É também esta mentalidade que permite às nações ocidentais achar que terão alguma coisa a dizer sobre a configuração da administração de Gaza depois de Israel concluir as suas operações, ou achar que alguém além do próprio povo palestiniano pode decidir sobre o que vai existir entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo depois de se libertarem da ocupação, do apartheid e do colonialismo israelitas.
As consequências económicas e geopolíticas
O primeiro “grande sucesso” dos ataques da Grã-Bretanha e EUA contra o Iémen é o aumento do preço do barril de petróleo. Este preço tinha-se mantido relativamente estável, mesmo com os ataques a alguns navios comerciais.
Caso o conflito no Iémen e no Mar Vermelho escale, as repercussões para a liberdade de circulação das mercadorias e para a economia global serão gigantescas. A situação tornar-se-ia ainda mais preocupante se o Irão entrasse activamente no conflito, já que este país controla o Estreito de Ormuz e, por isso, o acesso ao Golfo Pérsico.
Pelo Mar Vermelho e pelo Estreito de Ormuz passa cerca de 40% do petróleo da economia global. A imposição de um bloqueio sobre estas duas importantes rotas marítimas implicaria uma subida catastrófica do preço do petróleo e, por arrasto, mais uma vaga de inflação galopante.
Nada que preocupe os EUA pois, enquanto exportadores de petróleo, só sairiam beneficiados. Já a Europa, que inexplicavelmente continua a bater palmas a todas as decisões aberrantes que saem de Washington, seria o grande perdedor deste cenário. E, tal como com os aumentos no custo dos combustíveis, da energia e dos bens essenciais resultantes das sanções económicas à Rússia, os acréscimos serão suportados pela população dos países da Europa e do resto do mundo.
Sem falar, claro, do risco de uma guerra generalizada na região, que colocaria o mundo à beira da 3ª Guerra Mundial.
Artigo sobre a cumplicidade do estado português com a agressão contra o Iémen (2019):
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