Triplo fracasso da extrema-direita ucraniana em censurar “A Guerra a Leste”~ 13 min
Por F
Em A Guerra a Leste: 8 Meses no Donbass, Bruno de Carvalho conta a sua experiência enquanto repórter de guerra nos territórios do leste da Ucrânia, agora controlados pela Rússia. Como já o fizera em 2018, quando visitou pela primeira vez o Donbass, dá voz a uma população esquecida pelos media ocidentais, forçada a conviver com as explosões das bombas e dos mísseis fornecidos pelo Ocidente ao regime instalado em Kiev após o golpe de estado de 2014.
Bruno de Carvalho tem sido alvo de repetidas tentativas de silenciamento pois o seu trabalho põe em causa a narrativa imperialista que domina os media ocidentais. No seguimento do anúncio do lançamento do livro, Bruno de Carvalho foi alvo de mais uma destas campanhas, desta vez protagonizada pela Associação de Ucranianos em Portugal. Uma associação com extensas ligações à extrema-direita ucraniana, que convocou protestos em frente aos locais onde o livro foi apresentado, em Lisboa, Coimbra e Porto, e que apelou à comunidade ucraniana para pressionar as livrarias a retirar o livro das bancas.
Desta vez, as forças que querem ver voltar os tempos em que se censurava literatura – e se prendiam escritores e jornalistas – fracassaram, com centenas de pessoas a acudir às três apresentações que aconteceram durante a última semana, não só para ouvir o Bruno mas também para defender a liberdade de expressão e de imprensa.
A tentativa de silenciamento acabou por ter o efeito contrário, concentrando ainda mais atenção à volta deste importante livro. A primeira edição do livro, que chegou às bancas a 28 de Março, já se encontra praticamente esgotada. A segunda edição chegou ontem às bancas mas, tendo em conta o grande volume de pré-encomendas, prevê-se que também esgote rapidamente – e a Caminho já anunciou que vai avançar para a terceira edição. Como afirma Bruno de Carvalho, «isto mostra precisamente a fome de informação de um público órfão de repórteres no Donbass».
Slogans nazis na capital
A primeira sessão de apresentação teve lugar na livraria Buchholz, em Lisboa, na passada terça-feira. À hora marcada, cerca de uma centena e meia de pessoas enchia já o espaço da livraria, sentando-se pelas escadas ou escutando de pé, à entrada, de onde já não se via a mesa de onde Bruno falava. Ao seu lado estava o Major-general Carlos Branco, que escreveu o prefácio do livro.
Fora da livraria, outra centena e meia de pessoas que não conseguia entrar para ouvir a sessão, mas decidiu ficar até ao fim para defender a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa.
Do outro lado da rua, em resposta ao chamado da extrema-direita ucraniana em Portugal, cerca de cinquenta pessoas concentraram-se para assediar e insultar o autor e jornalista, assim como os presentes na sessão. Em pelo menos três ocasiões, ecoou na Rua Duque de Palmela o lema “Slava Ukraini, Heroyam Slava!” – quem seguiu a situação na Ucrânia durante a última década habitou-se a ouvi-lo cantado em marchas nocturnas, que iluminavam a capital ucraniana com milhares de tochas e prometiam levá-la de volta à idade das trevas. Tem outro impacto ouvi-lo em carne e osso, em Lisboa.
Este lema tem origem no Exército Insurgente Ucraniano (UPA) e na ala de Stepan Bandera da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN), que colaboraram com as forças nazis na Segunda Guerra Mundial e participaram no genocídio de mais de 100 mil judeus e polacos no oeste da Ucrânia. Pavlo Sadokha, presidente da Associação de Ucranianos em Portugal, é admirador confesso de Stepan Bandera.
Em 2018, este lema tornou-se, por decreto do então presidente Poroshenko, a saudação oficial do exército ucraniano, e continua a sê-lo durante a actual presidência de Zelensky.
Provocações, assédio e agressão
Foi em Coimbra, na passada quinta-feira, que se registaram os momentos mais tensos deste périplo do autor pelas três maiores cidades do país. Ao contrário do que aconteceu em Lisboa e no Porto, aqui a polícia não assegurou qualquer perímetro de segurança, tendo o autor e o público de passar pelo meio de cerca de duas dezenas de manifestantes que se concentravam à porta da Casa Municipal da Cultura.
No local, manifestantes e pessoas que chegavam à sessão envolveram-se em algumas trocas de palavras, sem que, no entanto, se registasse nenhuma confrontação ou incidente de maior importância. No entanto, alguns minutos após o início da apresentação do livro, uma dezena de pessoas invadiu o edifício e subiu as escadas que davam acesso à sala onde decorria a sessão.
O ruído feito pelos manifestantes ainda chegou à sala, mas o seu acesso foi impedido por várias pessoas presentes e por um par de agentes da polícia, cuja presença mal se tinha notado até então. A liderar o protesto estava Olga Filipova, que faz parte da Associação dos Ucranianos em Portugal e esteve na frente da campanha que levou ao despedimento, pela Universidade de Coimbra, de Vladimir Pliassov, então professor de russo na Faculdade de Letras da UC.
Os manifestantes, de cartazes e bandeiras ucranianas em riste e de ânimos exaltados, assediaram e insultaram as pessoas que continuavam a chegar para a sessão. A certa altura, no topo das escadas, uma das manifestantes chega a dar um pontapé a um idoso que pretendia assistir à apresentação. Os agentes presentes no local escolhem não identificar a agressora. O barulho feito pelos manifestantes continuava a fazer-se ouvir dentro da sala.
Pouco depois, mais polícias chegaram ao local e começaram a empurrar pela escadaria os manifestantes que se recusavam a sair por iniciativa própria. Ao longo das escadas, Olga Filipova ofereceu resistência aos polícias que, num par de ocasiões, a empurraram com mais veemência. Não são registadas, no entanto, bastonadas, nem cargas policiais, nem qualquer outro tipo de agressões violentas que seriam de esperar se um qualquer grupo de “extremistas da esquerda radical” tivesse, por exemplo, tentado invadir e boicotar a apresentação da mais recente peça de diarreia verbal publicada por Pedro Passos Coelho.
Os manifestantes acabaram por se retirar do edifício e permaneceram concentrados em frente à porta até a sessão acabar e a maior parte dos presentes abandonar o local, não tendo sido registados mais incidentes.
Um pasquim chamado Revista Visão
Valeu de pouco à polícia a sua habitual complacência com provocações de extrema-direita – no dia seguinte, um grupo de ucranianos apresentou queixa contra a PSP de Coimbra por alegado “abuso de autoridade” e utilização de violência contra os manifestantes. A Revista Visão, honrando a sua tradição de pseudo-jornalismo, dá palco à versão dos manifestantes, sem procurar qualquer contraditório.
Um artigo publicado nessa manhã noticia a queixa apresentada contra a polícia e apresenta como vítimas os elementos que invadiram a Casa Municipal da Cultura e tentaram perturbar a apresentação do livro. O “jornalista” João Amaral Santos, que assina o artigo, não procurou falar nem com o autor, nem com a polícia, nem com a própria Casa Municipal da Cultura, e faz a Bruno de Carvalho as mesmas críticas que são feitas pelos manifestantes.
Num texto publicado no mesmo dia, Bruno de Carvalho anuncia que vai «exigir à Visão que publique um artigo ao abrigo do direito de resposta» e apresentar «queixa do dito jornalista ao Conselho Deontológico do Sindicato de Jornalistas».
Nada disto é surpreendente tendo em conta o historial deste pasquim que, pelo menos desde 2022, branqueia os crimes da extrema-direita ucraniana e acusa de ser um agente “pró-russo” quem quer que não se vergue à narrativa ocidental. Um dos seus mais exímios propagandistas, Luís Ribeiro, publicava na altura artigos de suposto fact-checking, que distorciam a História e a realidade para absolver o regime de Zelensky de qualquer crime e afirmar que a existência de extrema-direita na Ucrânia era um mito criado pelos inimigos da liberdade. Agora, assina artigos sensacionalistas sobre o impacto ambiental do bloqueio do Mar Vermelho pelo Iémen, mas não parece preocupado com os gases com efeito estufa libertados pels infinitas toneladas de bombas lançadas sobre a Faixa de Gaza.
Porto: um final em cheio
A última destas três sessões teve lugar esta segunda-feira, na Universidade Popular do Porto, que, também ela, foi demasiado pequena para receber tanta gente. Com a sala preparada para acolher a sessão já completamente preenchida, a UPP abriu três outras salas onde montou, à última da hora, transmissão de som e vídeo. Mas nem essas salas foram suficientes, com dezenas de pessoas a sentarem-se nas escadas ou a ficarem de pé no átrio do edifício. À porta, algumas dezenas mais que não conseguiram entrar no espaço, mas aproveitaram para pôr a conversa em dia e discutir não só esta guerra mas também a campanha genocida levada a cabo por Israel contra a população de Gaza.
Do outro lado da estrada, uma mera dezena de manifestantes que davam vivas à Ucrânia e a Portugal enquanto acusavam o autor de fazer “propaganda russa”.
Nesta sessão, ao lado de Bruno de Carvalho esteve Luís Peixoto, da Antena 1, o único jornalista português que esteve nos dois lados da frente de batalha. Luís sublinhou a importância de, enquanto jornalistas, darmos uma visão o mais completa possível de cada conflito, fornecendo as informações necessárias para o público poder, de forma informada, chegar às suas próprias conclusões.
Luís Peixoto continuou dizendo que, assim como não se pode falar do 7 de Outubro de 2023 sem falar das décadas de ocupação, não se pode falar de 22 de Fevereiro de 2022 sem falar de 2014.
Para entender o que se passa no Leste da Ucrânia é preciso entender a sua população, maioritariamente russófona e com uma forte identidade soviética que perdura até hoje. Uma população que se revoltou contra o governo instalado em Kiev em 2014, integrado por forças de extrema-direita e dominado por uma retórica russofóbica, e para quem a guerra há muito se tornou o novo normal. O contínuo bombardear da cidade de Donetsk e de outras zonas civis pelas forças ucranianas, amplamente documentado em sucessivos relatórios da ONU, foi o golpe que a afastou definitivamente da esfera de influência de Kiev. Em 2022, antes do início da invasão russa, este conflito já tinha roubado a vida a mais de 15 mil pessoas.
Falar de tudo isto não é ser um instrumento da “propaganda russa”, é falar da realidade – e é essencial para perceber aquilo a que Carlos Branco chama, no prefácio do livro, «o maior acontecimento geopolítico do pós-Guerra Fria, determinante na definição dos termos da Ordem Mundial que aí vem».
Assange, Pablo, Shireen
É impossível falar da mais recente tentativa de silenciamento do trabalho jornalístico de Bruno de Carvalho sem falar de todos os outros jornalistas que, pelo mundo fora, se vêem privados de liberdade, quando não da própria vida.
Julian Assange, privado da sua liberdade desde 2012 pelas muitas e estrondosas revelações da Wikileaks, que puseram a nu incontáveis crimes praticados pelo Ocidente. Desde 2019, vive uma morte lenta na prisão de Belmarsh, enquanto aguarda uma decisão final sobre o seu processo de extradição para os EUA.
Pablo Gonzalez, experiente jornalista basco, detido na Polónia três dias após o início da invasão russa. Dois anos depois, continua em prisão preventiva sem que tenham sido apresentadas quaisquer provas que sustentem a acusação de espionagem de que é alvo.
São nomes incontornáveis, referidos por Bruno de Carvalho nas várias sessões. Mas há outros, menos conhecidos, que também merecem menção no livro – é o caso de Alejandro Kirk, o repórter da TeleSur «atingido no ombro e num olho por fragmentos de um rocket ocidental lançado pela artilharia ucraniana», e do director do diário basco Egin, que «esteve preso durante sete anos e meio» nas prisões do estado espanhol.
Os e as jornalistas que já não estão entre nós também não são esquecidas. «À memória de Xabier Galdeano, José Couso, Andrea Roccheli, Shireen Abu Akleh e dos jornalistas assassinados na Faixa de Gaza» é a primeira coisa que se lê ao abrir este livro de Bruno de Carvalho.