A tortura e morte lenta em isolamento de Julian Assange~ 75 min

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Por Duarte Guerreiro

Mais coisa, menos coisa, o mundo está há cerca de um mês fechado em casa, a esconder-se do COVID19 como se ele viesse cobrar dívidas. Ou pelo menos a parte do mundo que não tem de sair para trabalhar na fila do supermercado.

Durante este período, muitos de nós estão a descobrir colectivamente os efeitos enlouquecedores do isolamento. É certo que bate mais forte a uns do que a outros. A mim, se me derem um computador com ligação à Internet, podem-me enviar numa viagem de 3 anos para Marte que não ia dar pela diferença.

Mas até nós, os abençoados com um amor presente ou passado pela misantropia que nos fortificou a constituição para a presente situação, podemos reconhecer como estas circunstâncias estão a afectar mentalmente quem nos rodeia.

Tal é o risco que os especialistas de saúde mental temem que acabemos a ver um número substancial de patologias e mortes causadas pelo sofrimento psicológico de se estar em isolação social, cortados do exterior ou emparedados com gente que se detesta.

Neste contexto, talvez a presente situação tenha ajudado muita gente a mudar de opinião em relação à aplicação cada vez mais comum do regime de isolamento prisional imposto a prisioneiros pelo mundo fora, em particular prisioneiros que o poder “democrático” quer quebrar por motivos políticos mas não tem forma legítima de punir. Por isso enfiam-nos num buraco de cimento 23 horas por dia à espera que enlouqueçam.

O que nos leva ao homem cujo nome está no título. O isolamento social de Julian Assange não começou há um parco mês atrás, mas há mais de sete anos, quando se refugiou na embaixada do Equador no Reino Unido. Fê-lo para escapar à extradição para os Estados Unidos, onde enfrentaria um julgamento de fachada pelo crime de publicar factos embaraçosos sobre a superpotência favorita de toda a gente e a caquistocracia que a governa.

Da embaixada só saiu para ser transportado de forma ilegal para as entranhas do sistema prisional do Reino Unido, e apodrece presentemente na prisão de máxima segurança de Belmarsh. Oficialmente, apenas está a ser julgado por não comparecer em tribunal depois de sair com fiança.

Durante o seu isolamento, coleccionou ou agravou um conjunto impressionante de debilidades físicas que incluem depressão extrema (e é bem sabido que a depressão é imunossupressora) e uma doença pulmonar crónica. Tudo isto agravado pela falta de acesso a cuidados médicos adequados.

Não sejamos néscios. O objectivo é claramente matar Assange por negligência. A primeira esperança do poder era certamente que ele decidisse pendurar-se de uma corda. Mas agora há algo melhor. Em tempos de COVID19 a arder nas prisões de todo o mundo, basta esperar que alguém tussa em cima deste homem fragilizado.

Foi neste contexto que o tribunal recentemente recusou a saída da prisão sob fiança a Assange que, lembremo-nos, é um homem inocente acusado de crimes da treta e apenas mantido na prisão por malícia dos Estados Unidos. Isto apesar dos apelos de mais de 117 médicos pela sua libertação por motivos de saúde e do pedido urgente das Nações Unidas para a libertação de prisioneiros velhos, doentes e de baixo-risco, e de prisioneiros políticos em particular. A alternativa é transformar as prisões em mega-incubadoras de coronavírus. Assange pertence a 3 dessas 4 categorias.

Um importante relato

Dou a minha máxima recomendação à leitura dos relatos que se seguem. Eu sei que é muita coisa — e foi um longo trabalho de tradução — mas vale bem a pena para quem quiser mergulhar um pouco mais a fundo nos detalhes deste caso e no pantanal da justiça e diplomacia internacionais. Certamente que, depois de começar a ler, não consegui parar. São da autoria de Craig Murray, ex-embaixador pela Grã-Bretanha e agora jornalista e defensor dos direitos humanos.

São quatro dias de audiência em que a experiência de Murray como ex-funcionário do aparelho de Estado britânico ajuda a iluminar toda esta farsa que se está a desenrolar longe dos olhares do mundo — outra vantagem da acção do COVID19, já que dá uma desculpa aos jornalistas sérios e respeitáveis para ignorar a mais grave ameaça à sua profissão na memória recente. Tudo em troca da frágil promessa de que Assange é um caso aparte. Que os direitos dos jornalistas mainstream, que hoje em dia não passam de fotocopiadoras humanas de comunicados de imprensa, não estão sob ameaça. E provavelmente até não estão — não é como se algum deles fosse questionar o que os seus governos dizem.

Mas é do direito a questionar que se trata. Ao longo corroer de direitos universais que começou após o 11 de Setembro — a espionagem arbitrária dos cidadãos, as guerras ilegais de agressão, os assassinatos extrajudiciais de pressupostos inimigos — juntaremos agora a destruição do direito a expor tais crimes sob pena de morte encapotada.

A morte de Julian na prisão seria apenas mais uma prova de que todos os tratados e constituições que supostamente garantem a justiça nas democracias liberais apenas retêm utilidade enquanto substituto de papel higiénico, esse bem escasso em tempos de coronavírus. A única coisa que pode salvar o mais importante jornalista do século XXI é a pressão do público.

Os relatos abaixo do julgamento de Julian Assange foram disponibilizados por Craig Murray para reprodução e tradução aberta e podem também ser lidos no blogue do próprio.


O Vosso Homem na Galeria do Público – Dia 1 da Audiência de Assange

Por Craig Murray a 25 de Fevereiro de 2020

O Tribunal da Coroa de Woolwich foi pensado para impor o poder do Estado. Tribunais normais neste país são edifícios públicos, deliberadamente posicionados pelos nossos antepassados mesmo no centro das cidades, quase sempre a apenas uns poucos passos de distância de uma rua principal. O propósito principal do seu posicionamento e da sua arquitectura era facilitar o acesso público, na crença de que é vital que a Justiça possa ser vista pelo público.

O Tribunal da Coroa de Woolwich, que acolhe o Tribunal de Magistrados de Belmarsh, é construído sob o princípio completamente oposto. Foi pensado sem outro propósito para lá da exclusão do público. Anexado a uma prisão num pântano ventoso, longe de qualquer centro social normal, uma ilha acessível apenas através da navegação de um labirinto de faixas de rodagem duplas, toda a localização e arquitectura do edifício está baseada em impedir o acesso público. Está rodeado por uma continuação da mesma barreira de estacas de aço maciço que rodeia a prisão. É uma coisa extraordinária, um tribunal que é parte do próprio sistema prisional, um local em que à chegada já se é considerado culpado e na prisão. O Tribunal da Coroa de Woolwich é nada menos que a negação física da presunção de inocência, a incarnação da injustiça em implacável aço, betão e vidro blindado. Tem precisamente a mesma relação com a administração da Justiça que a Baía de Guantánamo ou Lubyanka. Na verdade, é apenas a ala de sentenças da prisão de Belmarsh.

Quando um activista apoiante de Assange perguntou sobre instalações para o público assistir à audiência, foi-lhe dito por um membro do pessoal do tribunal que tínhamos de perceber que Woolwich é um “tribunal de contra-terrorismo”. Tal é correcto na prática, mas na verdade um “tribunal de contra-terrorismo” é uma instituição desconhecida à Constituição do Reino Unido. De facto, se um único dia passado no Tribunal da Coroa de Woolwich não vos convencer de que a existência da democracia liberal é agora uma mentira, então a vossa mente é sem dúvida muito fechada.

Audiências de extradição não são realizadas no Tribunal de Magistrados de Belmarsh, dentro do Tribunal da Coroa de Woolwich. São sempre realizadas no Tribunal de Magistrados de Westminster, uma vez que se considera que a solicitação é entregue ao governo em Westminster. Agora vejam bem isto. Esta audiência é no Tribunal de Magistrados de Westminster. Está a ser realizada pelos magistrados de Westminster e pessoal de tribunal de Westminster, mas localizada no Tribunal de Magistrados de Belmarsh, dentro do Tribunal da Coroa de Woolwich. Toda esta estranha reviravolta é precisamente para que possam utilizar o “tribunal contra-terrorista” para limitar o acesso público e impor o medo do poder do Estado.

Uma das consequências é que, no tribunal em si, Julian Assange está confinado ao fundo do tribunal, atrás de um painel de vidro à prova de bala. Ele argumentou várias vezes durante os procedimentos de que isto lhe cria grande dificuldade em ver e ouvir os procedimentos. A magistrada, Vanessa Baraitser, escolheu interpretar isto com ensaiada desonestidade como se fosse um problema causado pelo fraco ruído feito pelos manifestantes no exterior, ao invés de um problema causado por Assange estar fechado longe da tribuna, numa caixa de vidro maciço.

Não há de todo razão alguma para Assange estar dentro dessa caixa, pensada para conter terroristas fisicamente violentos ao extremo. Ele podia sentar-se, como um arguido normalmente o faria, com os seus advogados no corpo do tribunal. Mas a cobarde e cruel Baraitser recusou repetidamente e persistentemente pedidos da defesa para que seja permitido a Assange sentar-se com os seus advogados. Baraitser é claramente apenas uma marioneta, supervisionada pela Sua Excelência Magistrada Chefe Arbuthnot, uma mulher tão enredada nas instituições dos serviços de defesa e segurança que não consigo conceber mais nenhuma outra forma na qual o seu envolvimento neste caso pudesse ser mais corrupto.

Não importa a Baraitser ou Arbuthnot se há uma genuína necessidade de Assange estar encarcerado numa caixa à prova de bala, ou se isso o impede de seguir os procedimentos do tribunal. A intenção de Baraitser é humilhar Assange, e inculcar em todos nós o horror ao vasto e esmagador poder do Estado. A força inexorável da ala de sentença da aterradora prisão de Belmarsh deve ser mantida. Se estás aqui, é porque deves ser culpado.

É a Lubyanka. Podes ser um prisioneiro em detenção preventiva. Pode-se tratar de apenas uma audiência e não um julgamento. Podes não ter historial de violência e não ser acusado de qualquer violência. Podes ter três dos mais eminentes psiquiatras do país a submeter relatórios sobre o teu historial de depressão clínica severa e a avisar sobre suicídio. Mas eu, Vanessa Baraitser, vou ainda assim fechar-te numa caixa pensada para os mais violentos dos terroristas. Para mostrar o que podemos fazer a dissidentes. E se depois não consegues seguir os procedimentos do tribunal, tanto melhor.

Irão talvez aceitar melhor o que digo sobre o tribunal quando vos digo que, para uma audiência que está a ser seguida por todo o mundo, trouxeram-na para uma sala de tribunal que tem um total de dezasseis assentos disponíveis para membros do público. 16. Para ter a certeza que conseguia um desses 16 e que podia ser o vosso homem na galeria, estive do lado de fora dessa grande vedação de ferro, na fila desde as 6 da manhã ao frio, chuva e vento. Ás 8 da manhã o portão foi destrancado, e pude entrar no interior da vedação para outra fila perante as portas do tribunal, onde apesar do facto de várias notificações indicarem claramente que o tribunal abre ao público às 8 da manhã, eu tive de estar na fila do lado de fora do edifício durante mais uma hora e quarenta minutos. Fui então processado por entre portas blindadas com câmara de ar, através de segurança estilo aeroporto, e tive de fazer fila atrás de outras duas portas fechadas, antes de finalmente chegar ao meu lugar no momento em que o tribunal começou às 10 da manhã. A intenção é que por essa altura estivéssemos completamente assustados e intimidados, já para não falar de encharcados e possivelmente hipotérmicos.

Havia uma entrada separada para os media e uma sala dos media com transmissão ao vivo a partir da sala de tribunal, e havia uma quantidade tão grande de media que pensei que podia relaxar e não me preocupar, uma vez que os factos básicos seriam amplamente relatados. Na verdade, não podia ter estado mais errado. Eu segui a argumentação de forma muito clara ao longo de todos os minutos do dia, e nem um só dos mais importantes factos e argumentos de hoje foi relatado em qualquer lado nos media dominantes. É uma alegação ousada, mas temo que seja perfeitamente verdadeira. Por isso tenho muito trabalho a fazer para deixar o mundo saber o que realmente aconteceu. O mero acto de ser uma testemunha honesta é subitamente extremamente importante, quando todos os media abandonaram esse papel.

O conselheiro da rainha James Lewis fez as declarações iniciais pela acusação. Consistia em duas partes, ambas igualmente extraordinárias. A primeira e mais longa parte foi verdadeiramente notável por não conter qualquer argumento legal, e por ser endereçada não ao magistrado mas aos media. Não se trata apenas de ser óbvio que era a estes que as suas observações eram dirigidas, ele próprio declarou por duas ocasiões durante as suas declarações iniciais que estava a endereçar os media, uma vez até a repetir uma frase e a dizer que a estava a repetir de novo especificamente porque era importante que os media a entendessem.

Estou francamente atónito que Baraitser o permitisse. Que um advogado enderece observações, não ao tribunal, mas aos media, está em completo desrespeito dos procedimentos, e simplesmente não podia haver prova mais clara de que isto é um julgamento mediático de fachada e que Baraitser é cúmplice de tal. Não tenho a mais pequena dúvida de que a defesa seria chamada à ordem com extrema rapidez se tivesse começado a endereçar observações aos media. Baraitser não faz qualquer esforço para se apresentar como qualquer outra coisa que não uma serva da Coroa, e por extensão do governo dos Estados Unidos.

Os pontos que Lewis queria que os media soubessem eram estes: não é verdade que os meios de comunicação dominantes como o Guardian e o New York Times também estejam ameaçados pelas acusações contra Assange, porque Assange não foi acusado de publicar os despachos mas apenas de publicar os nomes de informantes, e de aliciar Manning e prestar-lhe assistência na sua tentativa de invasão de computador. Só Assange tinha feito estas coisas, não os meios de comunicação dominantes.

Lewis procedeu então à leitura de uma série de artigos de meios de comunicações dominantes a atacar Assange, como prova de que os media e Assange não estavam no mesmo barco. Toda a hora de abertura consistiu na acusação a endereçar os media, a tentar colocar uma estaca entre os media e a Wikileaks, e desse modo a visar reduzir o apoio dos media a Assange. Foi um endereço político, nem de longe uma apresentação legal. Ao mesmo tempo, a acusação preparou resmas de cópias desta secção do discurso de Lewis, que foram distribuídas aos media e entregues electronicamente para que pudessem cortar e colar.

A seguir a uma pausa, a magistrada Baraitser questionou a acusação sobre a veracidade de algumas destas afirmações. Em particular, a afirmação de que os jornais não estavam na mesma posição porque Assange não era acusado de publicação, mas com “ajudar e ser cúmplice” de Chelsea Manning na obtenção do material, não parecia consistente com a leitura de Lewis da Lei de Segredos Oficiais de 1989, onde é dito que meramente obter e publicar qualquer segredo do governo é um crime. Por certo, sugeriu Baraitser, isso significava que apenas publicarem as leaks de Manning fazia dos jornais culpados de um crime?

Isto pareceu apanhar Lewis completamente desprevenido. A última coisa de que estava à espera era de qualquer tipo de perspicácia da parte de Baraitser, cujo trabalho era apenas fazer o que ele dissesse. Lewis murmurou atrapalhado, colocou e removeu os seus óculos várias vezes, ajustou o seu microfone repetidamente e pegou numa sucessão de folhas de papel da sua pasta, cada uma das quais pareceu surpreendê-lo pelos seus conteúdos, conforme acenava com elas no ar de forma infeliz e dizia que devia mesmo era ter citado o caso Shayler mas não o conseguia encontrar. Era como ver Columbo mas sem nenhum do charme e sem a pergunta incisiva no final do processo.

Subitamente, Lewis pareceu chegar a uma decisão. Sim, disse agora com muito mais firmeza. A Lei de Segredos Oficiais de 1989 tinha sido introduzida pelo governo Thatcher depois do caso Ponting, especificamente para remover o interesse público como defesa e tornar a posse sem autorização de um segredo oficial um crime de responsabilidade estrita – o que significa que, independentemente de como foi obtido, a publicação ou até mesmo a posse faz de alguém culpado. Portanto, sob o princípio da dupla criminalidade, Assange era passível de extradição quer tivesse ajudado e sido cúmplice de Manning ou não. Lewis acrescentou ainda que qualquer jornalista e qualquer publicação que imprimisse o segredo oficial ia desse modo também estar a cometer um crime, independentemente de como o tivessem obtido, ou de nomearem ou não informantes.

Desse modo Lewis acabou contradizer completamente toda a sua declaração inicial aos media em que disse que não precisavam de se preocupar, uma vez que as acusações contra Assange nunca poderiam ser-lhes aplicadas. E fê-lo logo a seguir a uma pausa, imediatamente depois da sua equipa ter distribuído cópias do argumento que tinha acabado de contradizer completamente. Não consigo imaginar que aconteça de forma habitual no tribunal um advogado sénior demonstrar-se de forma tão absoluta e imediata ser um inconstestável mentiroso em má-fé. Este foi, sem dúvida, o momento mais estonteante na audiência de tribunal de hoje.

No entanto, espantosamente, não consigo encontrar qualquer menção nos media dominantes de que tal aconteceu de todo. O que consigo encontrar, em todo o lado, é o relato nos media dominantes, via cortar e colar, da primeira parte do testemunho sobre o porquê da perseguição a Assange não ser uma ameaça à liberdade de imprensa; mas ninguém parece ter relatado que ele abandonou completamente o seu próprio argumento cinco minutos depois. São os jornalistas demasiado estúpidos para compreender a discussão?

A explicação é muito simples. A clarificação veio de uma pergunta que Baraitser colocou a Lewis e não há registo impresso ou electrónico da resposta de Lewis. A sua declaração inicial foi providenciada em formato cortar e colar aos media. A sua contradição requer que um jornalista tivesse escutado o que ele disse em tribunal, o compreendesse e tomasse nota. Não há uma percentagem significativa de jornalistas nos media dominantes que possuam tal capacidade elementar nos dias de hoje. O “jornalismo” consiste em cortar e colar apenas de fontes aprovadas. Lewis podia ter esfaqueado Assange até à morte no tribunal e tal não seria noticiado a não ser que estivesse presente num comunicado à imprensa do governo.

Fiquei incerto quanto ao propósito de Baraitser em tudo isto. É óbvio que ela provocou um enorme desconcerto em Lewis com este argumento, e pareceu ter tido bastante gozo em fazê-lo. Por outro lado, o argumento que ela fez não é necessariamente útil à defesa. O que ela estava a dizer era essencialmente que Julian podia ser extraditado sob dupla criminalidade, do ponto de vista do Reino Unido, apenas por publicar, quer tivesse ou não conspirado com Chelsea Manning, e que todos os jornalistas que publicaram também podiam ser processados. Mas é um argumento tão extremo que certamente está destinado a ser inválido sob a Lei de Direitos Humanos? Estaria ela a empurrar Lewis para articular uma posição tão extrema de modo a tornar-se insustentável – dando-lhe corda suficiente com que se enforcar – ou estava a salivar não apenas com a possibilidade de extraditar Assange, mas com a abertura em massa de processos contra jornalistas?

A reacção de um certo grupo foi muito interessante. Os quatro advogados do governo dos Estados Unidos sentados imediatamente atrás de Lewis tiveram a gentileza de mostrar-se muito desconfortáveis enquanto Lewis declarava atrapalhadamente que qualquer jornalista e qualquer jornal ou meio de comunicação que publicasse ou possuísse qualquer segredo do governo estava a cometer um crime grave. Toda a sua estratégia tinha sido fingir que não era isso o que estavam a dizer.

Lewis passou então para a conclusão dos argumentos da acusação. O tribunal não tinha nenhuma decisão a tomar, declarou ele. Assange deve ser extraditado. O crime passava o teste da dupla criminalidade, uma vez que era um crime tanto nos Estados Unidos como no Reino Unido. A lei de extradição do Reino Unido impedia especificamente o tribunal de testar se havia qualquer prova que corroborasse as acusações. Se houvesse, como a defesa argumentava, abuso processual, o tribunal deve ainda assim extraditar e depois tratar o abuso processual como uma questão separada contra os abusadores. (Este é um argumento particularmente espúrio, uma vez que não é possível ao tribunal tomar acção contra o governo dos Estados Unidos devido à imunidade soberana, como Lewis bem sabe). Finalmente, Lewis declarou que a Lei dos Direitos Humanos e a liberdade de expressão eram completamente irrelevantes em procedimentos de extradição.

Edward Fitzgerald levantou-se então para fazer os argumentos iniciais pela defesa. Começou por declarar que o motivo para a perseguição era inteiramente político, e que crimes políticos eram especificamente excluídos sob o artigo 4.1 do Pacto de Extradição entre o Reino Unido e os Estados Unidos. Fez notar que na altura do julgamento de Chelsea Manning, e de novo em 2013, a administração Obama tinha especificamente tomado a decisão de não processar Assange pelas leaks de Manning. Tal foi revertido pela administração Trump, por razões que eram inteiramente políticas.

Em relação a abuso processual, Fitzgerald referiu-se às provas apresentadas em tribunais criminais espanhóis que mostravam que a CIA tinha contratado uma firma de segurança espanhola para espiar Julian Assange na embaixada, e que esta espionagem incluía especificamente vigilância das reuniões confidenciais com os seus advogados para discutir a extradição. Que o Estado que está a tentar extraditar espie as consultas cliente-advogado é em si mesmo razão para descartar o caso. (Este argumento, é sem dúvida, correcto. Qualquer juiz decente descartaria sumariamente o caso pela escandalosa espionagem feita aos advogados de defesa).

Fitzgerald acrescentou que a defesa iria apresentar provas de que a CIA não só espiou Assange e os seus advogados, mas que considerou activamente raptar ou envenená-lo, e que isto mostrava que não havia qualquer compromisso com o estado de direito neste caso.

Fitzgerald disse que o enquadramento da acusação do caso continha deturpações deliberadas dos factos que também equivaliam a abuso processual. Não é verdade que houvesse qualquer prova de prejuízo aos informantes, e o governo dos Estados Unidos tinha confirmado isto em outros fóruns, por exemplo no julgamento de Chelsea Manning. Não tinha existido uma conspiração para invadir computadores, e Chelsea Manning tinha sido absolvida dessa acusação em tribunal militar. Finalmente, não era verdade que a Wikileaks tivesse iniciado a publicação de nomes não censurados de informantes, uma vez que outras organizações de media tinham sido responsáveis por fazê-lo primeiro.

Até agora, tanto quanto consigo perceber, enquanto a alegação de prejuízo a informantes dos Estados Unidos é amplamente relatada, a refutação total da defesa dos factos e a sua alegação de que a fabricação de factos equivale a abuso processual, não é de todo muito relatada. Fitzgerald referiu-se por fim às condições nas prisões dos Estados Unidos, a impossibilidade de um julgamento justo nos Estados Unidos e o facto da administração Trump ter declarado que os nacionais estrangeiros não iriam receber a protecção da Primeira Emenda [artigo da Constituição dos EUA relativo à liberdade de expressão], como razões para impedir a extradição. Podem ler todos os argumentos da defesa, mas na minha opinião a passagem mais forte é sobre o porquê de esta ser uma perseguição política, e portanto excluída da possibilidade de extradição.

Para os propósitos da secção 81(a), tenho em seguida de lidar com a questão de como esta perseguição politicamente motivada passa o teste de ser dirigida contra Julian Assange devido às suas opiniões políticas. A essência das opiniões políticas que desencadearam esta perseguição estão resumidas nos relatórios do Professor Feldstein [aba 18], Professor Rogers [aba 40], Professor Noam Chomsky [aba 39] e Professor Kopelman:

i. É um dos principais proponentes de uma sociedade aberta e da liberdade de expressão.

ii. É anti-guerra e anti-imperialismo.

iii. É famoso em todo o mundo como um campeão da transparência política e do direito do público de aceder a informação sobre assuntos de importância – assuntos como corrupção política, crimes de guerra, tortura e mau tratamento dos detidos de Guantánamo.

5.4. Essas crenças e essas acções levaram-no inevitavelmente ao conflito com Estados poderosos, incluindo a presente administração dos Estados Unidos, por motivos políticos. O que explica o porquê de ele ser denunciado como um terrorista e o porquê do Presidente Trump pedir a pena de morte.

5.5. Mas devo acrescentar que as suas revelações estão longe de estar limitadas às transgressões dos Estados Unidos. Ele expôs espionagem pela Rússia; e publicou denúncias do Sr. Assad na Síria; e diz-se que as revelações da Wikileaks sobre corrupção na Tunísia e tortura no Egipto foram o catalisador da própria Primavera Árabe.

5.6. Os Estados Unidos dizem que ele não é um jornalista. Mas verá um registo completo do seu trabalho no Pacote M. É um membro do Sindicato Australiano de Jornalistas desde 2009, é um membro do NUJ e da Federação Europeia de Jornalistas. Ganhou numerosos prémios de media, incluindo ser distinguido com o mais importante prémio para jornalista australianos. O seu trabalho foi reconhecido pel’O Economista, Amnistia Internacional e o Conselho da Europa. É o vencedor do prémio Martha Gelhorn e foi repetidamente nomeado para o Prémio Nobel da Paz, incluindo tanto o ano passado como este ano. Pode ver pelos materiais que ele escreveu livros, artigos e documentários. Ele teve artigos publicados no Guardian, New York Times, Washington Post e New Statesman, para mencionar apenas alguns. Algumas dessas mesmas publicações pelas quais se procura a sua extradição foram referidas e necessárias em tribunais pelo mundo fora, incluindo o Supremo Tribunal do Reino Unido e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Em resumo, ele foi um campeão da causa da transparência e liberdade de informação pelo mundo fora.

5.7. O Professor Noam Chomsky coloca a questão assim: – ‘ao corajosamente defender as crenças políticas que muitos professam partilhar, ele desempenhou um grande serviço a todos aqueles no mundo que estimam os valores da liberdade e democracia e que desse modo exigem o direito a saber o que os seus representantes eleitos estão a fazer’ [ver aba 39, parágrafo 14]. Portanto o impacto positivo de Julian Assange no mundo é inegável. A hostilidade que provocou na administração Trump é igualmente inegável.

O teste legal para as ‘opiniões políticas’

5.8. Tenho a certeza de que está ciente das autoridades legais neste tópico: nomeadamente se um pedido é feito por causa das opiniões políticas do arguido. Tem de se adoptar uma abordagem ampla quando se aplica o teste. Em defesa disto apoiamo-nos no caso de Re Asliturk [2002] EWHC 2326 (autoridades de abuso, aba 11, nos paras 25 – 26) que estabelece claramente que tal abordagem ampla deve ser aplicada ao conceito de opiniões políticas. E tal irá claramente abranger as posições ideológicas de Julian Assange. Para além do mais, também nos apoiamos em casos tais como o de Emilia Gomez v SSHD [2000] INLR 549 na aba 43 do pacote de autoridades de ofensas políticas. Estas mostram que o conceito de “opiniões políticas” se alarga às opiniões políticas imputadas ao cidadão individual pelo Estado que o processa. Por essa razão, a caracterização de Julian Assange e da Wikileaks como uma “agência de espionagem não-estatal hostil” pelo Sr. Pompeo torna claro que ele foi visado pelas opiniões políticas que lhe são atribuídas. Todos os especialistas nos relatórios que possui demonstram que Julian Assange foi visado por causa de uma posição política que lhe foi atribuída pela administração Trump – como um inimigo da América que deve ser derrubado.

Amanhã a defesa continua. Estou genuinamente incerto em relação ao que vai acontecer, uma vez que de momento me sinto demasiado exausto para estar lá às 6 da manhã para fazer fila para entrar. Mas espero de algum modo conseguir improvisar outro relato amanhã à tarde.


O Vosso Homem na Galeria do Público – Dia 2 da Audiência de Assange

Por Craig Murray a 26 de Fevereiro de 2020

Esta tarde, o advogado espanhol de Julian, Baltasar Garzón, abandonou o tribunal para regressar a Madrid. A caminho da saída, ele naturalmente parou para apertar a mão do seu cliente, oferecendo os seus dedos através da apertada abertura na jaula de vidro à prova de bala. Assange semi levantou-se para aceitar a mão do seu advogado. Os dois guardas de segurança dentro da jaula com Assange saltaram de imediato, agarraram Julian e forçaram-no a sentar-se, impedindo o aperto de mão.

Tal não foi de longe a pior coisa neste dia, mas é uma imagem marcante da força bruta e sem sentido a ser continuamente usada contra um homem acusado de publicar documentos. Que um homem não possa sequer apertar a mão do seu advogado em despedida é contra todo o espírito no qual os membros do sistema legal gostam de fingir que a lei é praticada. Eu proponho esse momento impressionante como representativo dos acontecimentos de ontem no tribunal.

Os procedimentos do dia 2 tinham começado com uma declaração de Edward Fitzgerald, o conselheiro da rainha de Assange, que nos deu um abanão inesperado e nos deixou despertos. Ele declarou que ontem, no primeiro dia do julgamento, Julian tinha sido por duas vezes despido e revistado, onze vezes algemado, e cinco vezes fechado em diferentes celas de detenção. Ainda para mais, todos os seus documentos do tribunal tinham-lhe sido retirados pelas autoridades prisionais, incluindo comunicações confidenciais entre os seus advogados e o próprio, e tinha sido deixado sem nenhuma capacidade de se preparar para participar nos procedimentos de hoje.

A magistrada Baraitser olhou para Fitzgerald e declarou, numa voz cheia de desdém, que ele tinha invocado tais questões anteriormente e que ela sempre havia respondido que não tinha jurisdição sobre o património prisional. Ele devia abordar a questão junto às autoridades prisionais. Fitzgerald permaneceu de pé, o que provocou um muito pronunciado franzir de sobrancelhas em Baraitser, e respondeu que é óbvio que o fariam de novo, mas que este comportamento repetido das autoridades prisionais ameaçava a capacidade da defesa de se preparar. Acrescentou que, independentemente da jurisdição, na sua experiência era prática comum os magistrados e juízes transmitirem comentários e requisições ao serviço prisional em que a conduta do julgamento era abrangida, e que as prisões normalmente ouviam os magistrados de forma favorável.

Baraitser negou redondamente qualquer conhecimento de tal prática, e declarou que Fitzgerald devia apresentar-lhe argumentos escritos a delinear a jurisprudência sobre jurisdição das condições prisionais. Foi demasiado até para o advogado da acusação James Lewis, que se levantou para dizer que a acusação também queria que Assange tivesse uma audiência justa. Mesmo assim, Baraitser continuou a recusar intervir junto da prisão. Declarou que se as condições na prisão eram assim tão más que atingiam a altíssima fasquia que tornava impossível uma audiência justa, a defesa devia avançar com uma moção para descartar as acusações com base nisso. De outro modo, deviam esquecer o assunto.

Tanto a acusação como a defesa pareceram surpreendidas pela afirmação de Baraitser de que não tinha ouvido falar de algo a que ambos se referiram como prática comum. Lewis pode ter ficado genuinamente preocupado perante a descrição chocante do tratamento prisional de ontem a Assange; ou pode só ter alarmes a disparar na cabeça que gritam “julgamento anulado”. Mas o resultado final é que Baraitser não irá tentar fazer nada para impedir o abuso físico e mental de Julian na prisão, nem tentar dar-lhe a capacidade de participar na sua defesa. A única explicação realista que me ocorre é que Baraitser tinha sido avisada para não se preocupar, porque estes maus-tratos contínuos e a confiscação de documentos advêem de autoridade governamental superior.

Um último pequeno incidente para eu recontar: uma vez que fiquei na fila novamente desde as primeiras horas da manhã, eu estava na fila final antes da entrada para a galeria do público, quando chamaram o nome de Kristin Hrnafsson, editor da Wikileaks, com o qual eu estava a falar nesse momento. Kristin identificou-se, e foi-lhe dito pelo oficial do tribunal que estava vedado da galeria do público.

Eu estive com o Kristin durante todos os procedimentos do dia anterior, e ele não tinha feito absolutamente nada errado – ele é um cavalheiro bastante discreto. Quando o chamaram, foi pelo nome e descrição de trabalho – estavam especificamente a banir o editor da Wikileaks da audiência. Kristin perguntou porquê e foi-lhe dito que era uma decisão do tribunal.

Por esta altura, John Shipton, o pai de Julian, anunciou que nesse caso os membros da família iam todos embora também, e assim o fizeram, abandonando o edifício. Eles e outros começaram então a tweetar a notícia do protesto da família. Isto pareceu causar alguma consternação entre os oficiais do tribunal, e quinze minutos depois Kristin foi readmitido. Ainda não temos qualquer ideia do que esteve por detrás disto. Mais tarde nesse mesmo dia, os jornalistas foram instruídos por oficiais de que tinha sido apenas por causa de cortes na fila, mas tal parece improvável uma vez que foi removido por funcionários que o chamaram pelo nome e título, em vez de o terem observado a cortar filas.

Em frente para os procedimentos do caso em si.

Pela defesa, o conselheiro da rainha Mark Summers declarou que as acusações nos Estados Unidos estavam inteiramente dependentes de três acusações factuais sobre o comportamento de Assange:

1) Assange ajudou Manning a descodificar uma chave criptográfica para aceder a material confidencial.

Summers declarou que tal era provavelmente uma falsa alegação, tendo em conta as provas do tribunal militar de Manning.

2) Assange solicitou o material a Manning.

Summers declarou que tal era provavelmente errado, com base em informação disponível ao público.

3) Assange colocou conscientemente vidas em risco.

Summers declarou que tal estava provavelmente errado com base em informação publicamente disponível e do envolvimento específico do governo dos Estados Unidos.

Em resumo, Summers declarou que o governo dos Estados Unidos sabia que as alegações que estavam a ser feitas eram falsas relativamente aos factos, e que foram comprovadamente feitas em má-fé. Tal constítuia desse modo um abuso processual que deveria levar ao indeferimento do pedido de extradição. Ele descreveu as três acusações acima como “lixo, lixo e lixo”.

Summers listou então os factos do caso. Ele disse que as acusações dos Estados Unidos dividem os materiais leaked por Manning à Wikileaks por três categorias:

a) Despachos diplomáticos

b) Sumários da avaliação dos detidos em Guantánamo

c) Regras de combate na Guerra do Iraque

d) Registos da guerra do Afeganistão e Iraque

Summers procedeu então metodicamente de a), b) c) e d) e relacionava cada um por sua vez aos alegados comportamentos 1), 2) e 3), totalizando doze rondas de explicação e exposição ao todo. Este relato detalhado levou umas quatros horas e não tentarei reproduzi-lo aqui. Em vez disso oferecerei destaques, mas irei fazer referência ocasional ao alegado número do comportamento e/ou a letra dos alegados materiais. Espero que consigam seguir – levou-me algum tempo a fazê-lo!

Na 1) Summers demonstrou conclusivamente em grande detalhe que Manning tinha acesso a cada um dos materiais a) b) c) d) providenciados à Wikileaks sem necessitar de qualquer código da parte de Assange, e que tinha tido acesso antes de sequer contactar Assange. Nem havia Manning necessitado de um código para ocultar a sua identidade, como alegava a acusação – a base de dados para analistas de dados a que Manning podia aceder – como o podiam milhares de outros – não necessitava de um nome de utilizador ou palavra-passe para ser acedida a partir de um computador de trabalho militar. Summers citou o testemunho de vários oficiais do tribunal militar de Manning para o confirmar. Nem tão pouco quebrar a palavra-passe de administrador de sistema desse sistema daria a Manning acesso a quaisquer bases de dados confidenciais adicionais. Summers citou provas do tribunal militar de Manning, onde tal foi aceite, que a razão porque Manning queria entrar na administração de sistema era para permitir aos soldados carregar videojogos e filmes nos seus portáteis governamentais, o que de facto ocorria frequentemente.

A magistrada Baraitser fez por duas vezes interrupções significativas. Comentou que se Chelsea Manning não sabia que não podia ser identificada como o utilizador que descarregou as bases de dados, podia ter procurado a assistência de Assange para quebrar um código para ocultar a sua identidade, ignorando que não precisava de o fazer, e que prestar assistência seria ainda assim um crime da parte de Assange.

Summers apontou que Manning sabia que não necessitava de um nome de utilizador e palavra-passe, porque de facto acedeu a todo o material sem nenhuma delas. Baraitser respondeu que isto não constituía prova de que sabia que não podia ser identificada. Summers disse que logicamente não fazia sentido argumentar que ela estava à procura de um código para ocultar o seu ID de utilizador e palavra-passe, onde não havia nenhum ID de utilizador e palavra-passe. Baraitser respondeu de novo que ele não podia prová-lo. Por esta altura, Summers ficou algo irritadiço e impaciente com Baraitser, e acompanhou-a novamente na revisão das provas do tribunal militar. Para além disso…

Baraitser também levantou a questão de que mesmo se Assange estivesse a ajudar Manning a quebrar um código administrativo, mesmo que tal não permitisse a Manning aceder a bases de dados adicionais, era ainda assim uso não autorizado e iria constituir o crime de auxílio e cumplicidade a uso indevido de um computador, mesmo que para um fim inocente.

A seguir a uma breve pausa, Baraitser regressou com uma fisgada. Disse a Summers que ele tinha apresentado as conclusões do tribunal marcial de Chelsea Manning nos Estados Unidos como facto. Mas ela não concordava que o seu tribunal tivesse de tratar provas de um tribunal marcial dos Estados Unidos, mesmo provas aceites e não contestadas ou provas da acusação, como facto. Summers respondeu que provas aceites ou provas da acusação num tribunal militar dos Estados Unidos eram claramente aceites pelo governo dos Estados Unidos como facto, e o que estava em causa de momento era se o governo dos Estados Unidos estava a fazer acusações contrárias aos factos que tinha em sua posse. Baraitser disse que regressaria ao seu argumento após as testemunhas serem ouvidas.

Baraitser não fazia agora qualquer esforço para disfarçar a sua hostilidade ao argumento da defesa, e parecia irritada que tivessem a ousadia de sequer fazê-lo. Tal transbordou aquando da discussão de c), as regras de combate da Guerra do Iraque. Summers argumentou que estas não tinham sido solicitadas a Manning, mas tinham na verdade sido providenciadas por Manning num ficheiro que acompanhava o vídeo do Homicídio Colateral, que mostrava o homicídio de jornalistas da Reuters e de crianças. O propósito de Manning, como declarado no seu tribunal militar, era mostrar que as acções no Homicídio Colateral violavam as regras de combate, apesar do Departamento de Defesa defender o contrário. Summers declarou que ao não incluir este contexto, o pedido de extradição dos Estados Unidos estava a ser enganoso deliberadamente, uma vez que nem sequer mencionava de todo o vídeo do Homicídio Colateral.

Por esta altura, Baraitser já não conseguia esconder o seu desprezo. Tentem imaginar Lady Bracknell a dizer “Uma mala de mão” ou “a linha de Brighton”, ou se a vossa educação não seguiu por esse caminho, tentem imaginar Pritti Patel [a Ministra do Interior do governo de Boris Johnson] ao ver um imigrante deficiente. Isto é uma citação literal:

Está a sugerir, Sr. Summers, que as autoridades, o governo, deveriam ter de providenciar contexto para as suas acusações?

Um imperturbável Summers respondeu na afirmativa e depois procedeu a indicar ocasiões em que o Supremo Tribunal o havia dito noutros casos de extradição. Baraitser demonstrava total confusão perante alguém reivindicar uma distinção significativa entre o governo e Deus.

A maior parte do argumento de Summers estava direccionado a refutar o comportamento 3), colocar vidas em risco. Tal só era invocado em relação aos materiais a) e d). Summers descreveu em grande detalhe os esforços da Wikileaks em conjunto com seus parceiros de media para, durante mais de um ano, levar a cabo uma campanha maciça para editar os despachos. Ele explicou que os despachos não editados só foram disponibilizados depois de Luke Harding e David Leigh do Guardian terem publicado a palavra-passe do pacote como título do capítulo XI do seu livro Wikileaks, publicado em Fevereiro de 2011.

Ninguém havia juntado 2 mais 2 relativamente à palavra-passe até a publicação alemã Der Freitag o ter feito e anunciado em Agosto de 2011 que tinha os despachos não editados. Summers apresentou então os argumentos mais fortes do dia.

O governo dos Estados Unidos tinha estado a participar activamente no esforço de edição dos despachos. Sabiam portanto que as alegações de publicação irresponsável eram falsas.

Assim que o Der Freitag anunciou que tinha os materiais não editados, Julian Assange e Sara Harrison ligaram imediatamente à Casa Branca, ao Departamento de Estado e à Embaixada dos Estados Unidos para os avisar que as fontes citadas poderiam ser colocadas em risco. Summers leu das transcrições das conversas telefónicas, em que Assange e Harrison tentavam convencer oficiais dos Estados Unidos da urgência da activação de procedimentos de protecção de fontes – e exprimiam o seu espanto conforme os oficiais os ignoravam. Estas provas minaram completamente o argumento do governo dos Estados Unidos e provaram má-fé no omitir de factos extremamente pertinentes. Foi um momento bastante impactante.

Em relação ao mesmo comportamento 3) nos materiais d), Summers demonstrou que o tribunal militar de Manning tinha aceite que estes materiais não continham nomes de fontes em risco, mas demonstrou que a Wikileaks tinha colocado em prática um esforço de edição particularmente cauteloso.

Muito mais foi dito pela defesa. Pela acusação, James Lewis indicou que responderia em detalhe numa ocasião futura dos procedimentos, mas gostaria de declarar que a acusação não aceita as provas do tribunal militar como facto, e não aceita em particular qualquer testemunho “interesseiro” de Chelsea Manning, que caracterizou como uma criminosa já condenada que invoca motivos nobres de forma falsa. A acusação rejeitou de forma geral qualquer ideia de que o tribunal devia considerar a verdade ou mesmo qualquer um dos factos; esses só podiam ser decididos em julgamento nos Estados Unidos.

Depois, para encerrar os procedimentos, Baraitser largou uma bomba. Ela declarou que apesar do artigo 4.1 do Tratado de Extradição dos Estados Unidos / Reino Unido proibir extradições políticas, tal apenas acontecia no tratado. Essa excepção não aparece na Lei de Extradição do Reino Unido. Tendo isso em conta, tal significa que a extradição política não é ilegal no Reino Unido, uma vez que o tratado não tem força legal no tribunal. Convidou a defesa a endereçar esta argumentação pela manhã.

São agora 6:35 da manhã e estou atrasado para ficar na fila…


O Vosso Homem na Galeria do Público – Dia 3 da Audiência de Assange

Por Craig Murray a 27 de Fevereiro de 2020

Nos procedimentos de ontem em tribunal, a acusação apresentou argumentos tão crus e aparentemente irracionais que tenho estado inquieto em relação a como escrever sobre eles de forma a que não pareça estar a fazer uma caricatura ou uma exageração injusta da minha parte. O que tem estado a acontecer neste tribunal há muito que foi para lá da caricatura. Tudo o que posso fazer é dar-vos a minha garantia pessoal de que o que reconto é o que de facto aconteceu.

Como habitual, irei lidar com questões processuais e o tratamento do Julian primeiro, antes de iniciar uma descrição clara do argumentos legais que foram feitos.

Vanessa Baraitser está sob claras instruções para fingir preocupação via perguntar, perto do fim de cada sessão e mesmo antes de termos de fazer uma pausa seja como for, se o Julian se está a sentir bem e se gostaria de fazer uma pausa. Depois ignora de forma rotineira a sua resposta. Ontem ele respondeu de forma alongada que não conseguia ouvir adequadamente a partir da sua caixa de vidro e que não podia comunicar com os seus advogados (ontem a dada altura começaram a impedi-lo de passar notas aos seus advogados, o que descobri fazer parte do contexto em que foi agressivamente impedido o aperto de mão em despedida de Garzon).

Baraitser insistiu que ele só podia ser ouvido via os seus advogados, e uma vez que ele estava a ser impedido de os instruir, dizê-lo requer algum atrevimento. Quando tal foi apontado, houve uma interrupção de dez minutos para que Julian e os seus advogados pudessem conversar nas celas abaixo – presumivelmente onde convenientemente pudessem mais uma vez ser colocados sob escuta.

No regresso, Edward Fitzgerald fez um pedido formal para que fosse permitido a Julian sentar-se ao lado dos seus advogados no tribunal. Julian era “um homem gentil e intelectual” e não um terrorista. Baraitser respondeu que libertar Julian do banco dos réus para o corpo do tribunal significaria que ele estava a ser libertado da custódia. Para assim ser, seria necessário solicitar um pedido de fiança.

Mais uma vez, o advogado da acusação James Lewis interveio pela defesa para tentar tornar o tratamento de Julian menos extremo. Ele não estava, sugeriu timidamente, inteiramente convencido de que era correcto dizer ser necessária fiança para Julian estar no corpo do tribunal, ou que estar no corpo do tribunal acompanhado por agentes de segurança significava que um prisioneiro já não estava sob custódia. Os prisioneiros, mesmo os mais perigosos terroristas, ofereciam testemunho a partir da bancada das testemunhas no corpo do tribunal, ao lado dos advogados e magistrados. No Supremo Tribunal, os prisioneiros sentam-se frequentemente com os seus advogados nas audiências de extradição, em casos extremos de criminosos violentos, algemados a um agente de segurança.

Baraitser respondeu que Assange poderia ser um perigo para o público. Era uma questão de saúde e segurança. Duvidavam Fitzgerald e Lewis da sua habilitação para levar a cabo a necessária avaliação de risco? Teria então de ser responsabilidade do Grupo 4 [a companhia de segurança privada encarregada da prisão] decidir se tal era possível.

Sim, ela disse isso mesmo. O Grupo 4 teria de decidir.

Baraitser começou então a disparar jargão como um Dalek quando perde o controlo. “Avaliação de risco” e “saúde e segurança” foram recorrentes. Começou a parecer algo ainda pior que um Dalek, um oficial de governo local de muito baixa patente e particularmente estúpido. “Não há jurisdição” – “É com o Grupo 4”. Após acalmar-se ligeiramente, ela declarou firmemente que a entrega à custódia só podia significar entrega ao banco dos réus e a mais nenhum lado na sala. Se a defesa o queria na sala do tribunal onde melhor pudesse ouvir os procedimentos, podiam solicitar fiança e a sua libertação da custódia em geral. Pôs-se então a fitar ambos os advogados na esperança de que isto os fizesse sentar, mas ainda estavam ambos de pé.

No seu jeito reservado (que confesso me começa a agradar) Lewis disse que “a acusação é neutra em relação a este pedido, claro, mas, err, não me parece que tal seja correcto”. Ele olhou para ela como o faria um tio afável cuja sobrinha favorita tinha acabado de começar a beber tequila directamente da garrafa durante uma festa de família.

Baraitser concluiu a questão ao declarar que a defesa devia submeter argumentos escritos sobre este assunto até às 10 horas da manhã do dia seguinte, e ela iria então levar a cabo uma audiência separada sobre a questão da posição de Julian no tribunal.

O dia tinha começado com uma magistrada Baraitser muito zangada a endereçar o público. Ontem, disse ela, foi tirada uma foto dentro do tribunal. É uma ofensa criminal tirar ou tentar tirar fotografias dentro do tribunal. Vanessa Baraitser parecia nesse momento muito desejosa de mandar alguém para trás de barras. Na sua raiva, também parecia estar a assumir sem fundamento que quem quer que fosse que tirou a foto a partir da galeria do público na terça ainda lá estava na quarta; suspeito que não. Zangar-se ao calhas com o público deve-lhe ser muito stressante. Suspeito que grita muito quando anda de comboio.

A senhora Baraitser não é uma apreciadora de fotografia – parece ser a única figura pública na Europa ocidental sem foto na Internet. De facto, o proprietário comum de um pequeno negócio rural de lavagem de carros deixou mais provas da sua existência e histórico de vida na Internet que Vanessa Baraitser. O que não é crime nenhum da parte dela, mas eu suspeito que a purga não foi conseguida sem um esforço considerável. Alguém me sugeriu que ela talvez fosse um holograma, mas acho que não. Os hologramas possuem mais empatia.

Achei divertida a ofensa criminal de tentar tirar fotos na sala de tribunal. Quão incompetente teria de se ser para tentar tirar uma foto e falhar? E se nenhuma foto foi tirada, como é que provam que se estava a tentar tirar uma, em vez de se estar a enviar uma mensagem à mãe? Suponho que “tentar tirar uma foto” é um crime que poderia afectar alguém que chegasse com uma enorme SLR, um tripé e várias caixas de equipamento de iluminação, mas nenhuma dessas coisas parece ter feito caminho até à galeria do público.

Baraitser não declarou se é uma ofensa criminal publicar uma foto tirada na sala de tribunal (ou até tentar publicar uma fotografia tirada numa sala de tribunal). Suspeito que é. Seja como for, o Le Grand Soir publicou uma tradução do meu relato de ontem, e lá podem ver a foto de Julian na sua caixa anti-terrorista à prova de bala. Não foi, acrescento de imediato, tirada por mim.

Chegamos agora à consideração dos argumentos legais de ontem sobre o pedido de extradição em si. Felizmente, estes são bastante fáceis de resumir, porque apesar de termos tido cinco horas de discussão, consistiram na sua maioria em ambos os lados competirem na citação de resmas de “autoridades”, ou seja, juízes mortos, para promover o seu ponto de vista, e desse modo repetir os mesmos argumentos continuamente com pouco valor a ser acrescentado pela exegese das inúmeras citações.

Como prefigurado ontem pela magistrada Baraitser, a acusação está a argumentar que o artigo 4.1 do Tratado de Extradição do Reino Unido / Estados Unidos não tem força de lei.

O governo do Reino Unido e dos Estados Unidos dizem que o tribunal aplica a lei doméstica, não a lei internacional, e desse modo o tratado não tem força. Este argumento foi feito no tribunal em formato escrito ao qual eu não tenho acesso. Mas pela discussão em tribunal, era claro que a acusação está a argumentar que a Lei de Extradição de 2003, sob a qual o tribunal está a operar, não faz excepções para crimes políticos. Todas as anteriores Leis de Extradição tinham excluído a extradição por crimes políticos, portanto deve ser intenção do parlamento no poder que os infractores políticos possam agora passar a ser extraditados.

Ao lançar este argumento, o conselheiro da rainha Edward Fitzgerald defendeu que a Lei de Extradição de 2003 por si só não basta para levar a cabo uma extradição. A extradição requer a presença de duas coisas; a lei de extradição geral e o tratado de extradição com o país ou países envolvidos. “Não há tratado, não há extradição” era uma regra inquebrável. O tratado era toda a base do pedido. Portanto dizer que a extradição não é governada pelos termos do mesmo tratado sob o qual foi feita, era criar um absurdo legal e desse modo um abuso processual. Citou exemplos de julgamentos realizados pela Câmara dos Lordes e pelo Conselho Privado onde os direitos dos tratados eram considerados aplicáveis apesar da falta de incorporação na legislação doméstica, particularmente para poder impedir pessoas de serem extraditadas das colónias britânicas para uma possível execução.

Fitzgerald destacou que apesar do Tratado de Extradição de 2003 não conter um entrave às extradições por crimes políticos, não dizia que não podia haver tal entrave nos tratados de extradição. E o Tratado de Extradição de 2007 foi ratificado depois da Lei de Extradição de 2003.

Foi por esta altura que Baraitser interrompeu para dizer que era óbvio que a intenção do parlamento era que pudesse haver extradição por crimes políticos. De outro modo não teriam removido o entrave na legislação anterior. Fitzgerald recusou concordar, e argumentou que a lei não dizia que a extradição por crimes políticos não podia ser banida pelo tratado que permite a extradição.

Fitzgerald continuou, e disse que a jurisprudência internacional tinha aceite há um século ou mais que não se extradita infractores políticos. A não extradição política estava presente na Convenção Europeia sobre Extradição, no Tratado de Extradição do Modelo das Nações Unidas e na Convenção sobre Extradição da Interpol. Estava em absolutamente todos os tratados de extradição dos Estados Unidos com outros países, e estava lá há mais de um século, por insistência dos Estados Unidos. Para o governo do Reino Unido, assim como dos Estados Unidos, virem dizer que não se aplica era espantoso e introduziria um terrível precedente que colocaria em risco dissidentes e potenciais prisioneiros políticos oriundos da China, Rússia e regimes por todo o mundo, que tivessem escapado para países terceiros.

Fitzgerald declarou que todas as principais autoridades concordavam que existiam dois tipos de crimes políticos. O crime político puro e o crime político relativo. Um crime político “puro” era definido como traição, espionagem ou sedição. Um crime político “relativo” era um acto normalmente criminoso, como agressão ou vandalismo, levado a cabo por motivação política. Todas as acusações contra Assange eram de crime político “puro”. Todas excepto uma eram acusações de espionagem, e a acusação de uso indevido de computador havia sido comparada pela acusação a uma violação da Lei de Segredos Oficiais para passar o teste de dupla criminalidade. A acusação principal de que Assange estava a tentar prejudicar os interesses políticos e militares dos Estados Unidos estava na própria definição de crime político em todas as autoridades.

Em resposta, Lewis declarou que um tratado não podia ser vinculativo na lei inglesa a não ser que especificamente incorporado na lei inglesa pelo parlamento. Esta era uma necessária defesa democrática. Os tratados eram feitos pelo executivo, que não podia fazer lei. Tal diz respeito à soberania do parlamento. Lewis citou muitos julgamentos que declaravam que tratados internacionais assinados e ratificados pelo Reino Unido não podiam ser aplicados em tribunais britânicos. Disse como piada que “será porventura uma surpresa para outros países descobrir que os seus tratados com o governo britânico não possuem força legal”.

Lewis disse que não havia abuso processual neste caso e portanto nenhum direito era invocável sob a Convenção Europeia. Era apenas o normal funcionamento da lei que as provisões do tratado sobre a não extradição por crimes políticos não tivessem aplicação legal.

Lewis disse que o governo dos Estados Unidos disputa que os crimes de Assange fossem políticos. No Reino Unido / Austrália / Estados Unidos existia uma definição diferente de crime político do que no resto do mundo. Nós não víamos os crimes políticos “puros” de traição, espionagem e sedição como crimes políticos. Apenas os crimes políticos “relativos” – crimes convencionais levados a cabo por motivações políticas – eram vistos como crimes políticos na nossa tradição. Nesta tradição, a definição de “político” também era limitada ao apoio a um partido político de oposição num Estado. Lewis continuará este argumento amanhã.

Tal conclui o meu relato dos procedimentos. Tenho alguns comentários importantes a fazer sobre tudo isto e tentarei fazer outra publicação mais tarde no dia de hoje. Agora a apressar-me para chegar ao tribunal.


O Vosso Homem na Galeria do Público – Dia 4 da Audiência de Assange

Por Craig Murray a 28 de Fevereiro de 2020

Por favor, façam uma experiência por mim.

Experimentem fazer a seguinte pergunta em voz alta, num tom interessado e participativo: “Está a sugerir que ambos têm o mesmo efeito?”.

Agora experimentem fazer essa pergunta em voz alta, num tom de hostilidade e incredulidade a roçar o sarcasmo: “Está a sugerir que ambos têm o mesmo efeito?”.

Em primeiro lugar, parabéns pelas capacidades actuação; seguem indicações de direcção muito bem. Em segundo, não é fascinante como exactamente as mesmas palavras podem indicar o significado oposto, dependendo da modulação da acentuação, tom e volume?

Ontem a acusação continuou a argumentar que a disposição no Tratado de Extradição de 2007 do Reino Unido e Estados Unidos que impede a extradição por crimes políticos é letra morta, e que de qualquer modo os objectivos de Julian Assange não são políticos. O conselheiro da rainha pela acusação, James Lewis, falou durante cerca de uma hora, e o conselheiro da rainha Edward Fitzgerald respondeu pela defesa durante mais ou menos o mesmo tempo. Durante a apresentação de Lewis, foi interrompido pela juíza Baraitser apenas e exactamente uma única vez. Durante a resposta de Fitzgerald, Baraitser interveio dezassete vezes.

Na transcrição, essas interrupções não irão parecer injustificadas:

“Poderia clarificar-me, Sr. Fizgerald…”

“Portanto como é que lida com o argumento do Sr. Lewis de que…”

“Mas esse é certamente um argumento circular…”

“Mas não está incorporado, pois não?…”

Todas estas e mais uma dúzia de interrupções foram pensadas para dar a aparência de uma juíza a tentar clarificar os argumentos da defesa num espírito de examinação intelectual. Mas se ouvissem o tom da voz de Baraitser, se vissem a sua linguagem corporal e expressões faciais, era tudo menos isso.

A falsa imagem que a transcrição pode passar é exacerbada pelo facto do cortês Fiztgerald responder repetidamente a cada uma das óbvias provocações com “Obrigado sua Excelência, é muito prestável”, o que, mais uma vez, se lá estivessem, claramente significa o oposto. Mas o que uma transcrição irá prestávelmente demonstrar é a táctica de [Baraitser] usar a sua bancada para interromper Fitzgerald uma e outra e outra vez, para denegrir os seus argumentos e, de facto, impedi-lo muito deliberadamente de deixar o seu argumento fluir. O contraste em todos os aspectos com o seu tratamento de Lewis não podia ser mais pronunciado.

E agora, para relatar os argumentos legais em si mesmos.

James Lewis continuou os seus argumentos do dia anterior pela acusação, e disse que o Parlamento não tinha incluído um entrave à extradição por crimes políticos na Lei de 2003. Este não podia portanto ser reintroduzido na lei por um tratado. “Introduzir um entrave a crimes políticos pela porta das traseiras seria subverter a intenção do parlamento.”

Lewis também argumentou que estes não eram crimes políticos. A definição de crime político estava limitada no Reino Unido a comportamentos cuja intenção fosse “derrubar ou mudar um governo ou induzi-lo a mudar a sua política.” Adicionalmente, o objectivo deve ser mudar o governo ou políticas a breve prazo, não num futuro indeterminado.

Lewis disse ainda que o termo “crime político” só podia ser aplicado a crimes cometidos dentro do território onde se tentou aplicar a mudança. Portanto, para serem classificados como crimes políticos, Assange teria de os cometer dentro do território dos Estados Unidos, o que não fez.

Se Baraitser decidisse que o entrave a crimes políticos era aplicável, o tribunal teria de determinar o significado de “crime político” no Tratado de Extradição entre o Reino Unido e Estados Unidos e interpretar o significado dos parágrafos 4.1 e 4.2 do tratado. Interpretar os termos de um tratado internacional estava para lá dos poderes do tribunal.

Lewis discursou que a conduta de Julian Assange não tinha possibilidade de ser classificada como um crime político. “É impossível colocar Julian Assange na posição de um refugiado político”. A actividade na qual a Wikileaks estava envolvida não era na verdade oposição política à administração dos Estados Unidos ou uma tentativa de derrubar essa administração. Desse modo, o crime não era político.

Pela defesa, Edward Fitzgerald respondeu que a Lei de Extradição de 2003 era uma lei facilitadora sob a qual os tratados podiam operar. O parlamento havia tido a preocupação de remover qualquer ameaça de abuso dos crimes políticos para desculpar actos de violência terrorista contra civis inocentes. Mas ainda permanecia uma protecção clara, aceite em todo o mundo, para dissidência política pacífica. Tal estava reflectido na Lei de Extradição com base na qual o tribunal estava a agir.

Baraitser interrompeu para dizer que o Tratado de Extradição do Reino Unido e Estados Unidos não estava incorporado na lei inglesa.

Fitzgerald respondeu que o pedido de extradição era todo ele baseado no tratado. É um abuso processual as autoridades usarem o tratado para a aplicação, mas depois defender que as suas provisões não se aplicam.

Á primeira vista, é um argumento muito bizarro que um tratado que dá origem à extradição, na qual a extradição é fundamentada, possa ser ignorado nas suas provisões. Á primeira vista é absurdo.

Fitzgerald acrescentou que o tribunais ingleses frequentemente interpretavam tratados. Deu exemplos.

Fitzgerald continuou a argumentar que a defesa não aceitava que traição, espionagem e sedição não fossem consideradas crimes políticos em Inglaterra, mas mesmo que se aceitasse a definição excessivamente restrita de crime político de Lewis, o comportamento de Assange continuava a passar o teste. Que outro motivo no planeta poderia haver para publicar provas de crimes de guerra e corrupção governamentais, senão para mudar a política do governo? De facto, as provas iriam demonstrar que a Wikileaks tinha efectivamente mudado a política do governo dos Estados Unidos, particularmente no Iraque.

Baraitser interveio para dizer que expor transgressões governamentais não era a mesma coisa que tentar mudar a política do governo. Fitzgerald perguntou-lhe, finalmente em alguma exasperação depois de interrupções sem fim, que outro motivo poderia haver para expor transgressões governamentais senão para induzir mudanças na política do governo?

Tal concluiu os argumentos iniciais da acusação e defesa.

O meu comentário pessoal

Deixem-me colocar isto o mais neutralmente possível. Se pudessem honestamente dizer que o argumento de Lewis era muito mais lógico, racional e intuitivo do que o de Fitzgerald, poderiam perceber porque é que Lewis não precisou de ser interrompido, enquanto Fitzgerald teve de ser continuamente interrompido para “clarificação”. Mas na verdade foi Lewis que estava a defender o argumento de que as provisões do mesmíssimo tratado pelo qual está a ser feita a extradição, de facto não se aplicam, um salto lógico ao qual sugiro que o homem na carruagem de Clapham [uma alegoria jurídica para designar um cidadão comum] pode raciocinar necessitar de muito mais verificação do que o argumento contrário de Fitzgerald. Comparativamente, o assédio de Baraitser a Fitzgerald quando ele tinha a acusação a um canto saiu directamente do guia de Stalin para julgamentos de fachada.

A defesa não o mencionou, e não sei se tal está presente nos seus argumentos escritos, mas achei extraordinariamente desonesto o argumento de Lewis de que estes não podiam ser crimes políticos porque Julian Assange não estava nos Estados Unidos quando os cometeu. Os Estados Unidos reivindicam jurisdição universal. Assange está a ser acusado por crimes de publicação enquanto estava fora dos Estados Unidos. Os Estados Unidos reivindicam o direito de acusar qualquer um, de qualquer nacionalidade, em qualquer lado do mundo, que prejudique os interesses dos Estados Unidos. Adicionalmente, também reivindicam aqui que como os materiais podiam ser vistos na Internet nos Estados Unidos, houve uma ofensa nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo reivindicar que tal não é um crime político, uma vez que foi cometido fora dos Estados Unidos é, como Edward Fitzgerald poderia dizer, claramente absurdo. Algo que Baraitser curiosamente não parece ter compreendido.

O argumento de Lewis de que o tratado não tem qualquer base na lei inglesa não é algo que ele acabou de inventar. Nigel Farage não se materializou do nada. Há na verdade uma longa tradição na lei inglesa de que até mesmo um tratado assinado e ratificado com um qualquer estrangeiro não pode constranger de forma alguma um tribunal inglês. Lewis podia e de facto jorrou resmas e resmas de julgamentos de velhos juízes com cara de beterraba a debitar exactamente a mesma coisa na Câmara dos Lordes, antes de saírem para ir dar tiros em faisões e dar palmadas no filho do lacaio. Lewis teve especial apego ao caso do Conselho de Lata.

Claro que há uma tradição contrária e muito mais iluminada, e um número de julgamentos que dizem o exacto oposto, a maioria mais recentes. Por isso é que houve tantos argumentos repetitivos conforme cada um dos lados empilhava mais e mais volumes de “autoridades” do seu lado do caso.

A dificuldade para Lewis – e para Baraitser – é que este caso não é análogo a eu ir comprar um chocolate Mars e depois ir para tribunal porque um tratado internacional sobre chocolates Mars diz que o meu é demasiado pequeno.

É mais correcto dizer que a Lei de Extradição de 2003 é uma lei facilitadora da qual dependem então os tratados de extradição. Não podes desse modo extraditar sob a Lei de 2003 sem o tratado. Portanto o Tratado de Extradição de 2007 torna-se de uma forma bastante clara um instrumento executivo legalmente necessário para autorizar a extradição. Que as autoridades executivas rompam com os termos do necessário instrumento executivo sob o qual estão a agir, tem de ser simplesmente visto como um abuso processual. Portanto o tratado de extradição, tendo em conta o seu tipo e a sua necessidade de acção legal, está de facto incorporado na lei inglesa pela Lei de Extradição de 2003, do qual depende.

O tratado de extradição é uma pré-condição necessária para a extradição, enquanto que um tratado de chocolates Mars não é uma pré-condição para comprar o chocolate Mars.

Esta é a forma mais simples que tenho de explicar. A minha esperança é que seja compreensível.

Claro que é complicado para Lewis que, nesse mesmo dia, o Tribunal de Recurso estivesse a decidir contra a construção da terceira pista de aterragem de Heathrow, em parte por causa da sua incompatibilidade com o Acordo de Paris de 2016, apesar deste último não estar completamente incorporado na lei inglesa pela Lei das Alterações Climáticas de 2008.

Experiência pessoal vital

É intensamente embaraçoso para o Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth quando um tribunal inglês repudia a aplicação de um tratado que o Reino Unido ratificou com um ou mais estados estrangeiros. Por essa razão, no mundo moderno, foram colocados em prática procedimentos e precauções muito sérios para ter a certeza de que tal não acontece. Desse modo, o argumento da acusação de que todas as provisões do Tratado de Extradição do Reino Unido e Estados Unidos de 2007 não podem ser implementadas sob a Lei de Extradição de 2003, deveria ser impossível de fazer.

Tenho de explicar que eu próprio negociei e supervisionei a entrada em vigor de tratados nos Negócios Estrangeiros. O último ao qual eu pessoalmente atei a fita e apliquei o lacre (literalmente) foi o Tratado da Placa Continental Anglo-Belga de 1991, mas estive envolvido na negociação de outros e o sistema que vou descrever ainda estava em prática quando deixei os Negócios Estrangeiros como embaixador em 2005, e penso que permanece inalterado até hoje (e lembrem-se que a Lei de Extradição é de 2003 e o Tratado de Extradição do Reino Unido e Estados Unidos foi ratificado em 2007, portanto o meu conhecimento não está desactualizado). As nomenclaturas departamentais mudam de tempos a tempos, assim como a estrutura organizacional. Mas os gabinetes e funções que irei descrever permanecem, mesmo que os nomes sejam diferentes.

Todos os tratados internacionais têm um processo de duas fases. Primeiro são assinados para mostrar que o governo concorda com o tratado. Depois, a seguir a uma espera, são ratificados. Esta segunda fase toma lugar depois do governo viabilizar a legislação e outras agências necessárias para implementar o tratado. Esta é a resposta para a observação de Lewis sobre os papéis do executivo e legislação. A fase de ratificação só toma lugar depois de qualquer necessária acção legislativa. Esse é todo o ponto central da questão.

É assim que acontece nos Negócios Estrangeiros. O tratado de extradição é negociado por oficiais. É assinado pelo Reino Unido. O tratado assinado é depois devolvido aos conselheiros legais dos Negócios Estrangeiros, Departamento de Nacionalidade e Tratados, Departamento Consular, Departamento Norte-Americano e outros e é enviado aos Gabinete de Solicitadores do Tesouro / Conselho de Ministros e Ministério do Interior, Parlamento e quaisquer outro departamento governamental cujo âmbito seja impactado pelo tratado individual.

O tratado é extensamente vetado para verificar se pode ser implementado na totalidade em todas as jurisdições do Reino Unido. Se não pode, é preciso então fazer emendas à lei para que possa. Estas emendas podem ser feitas via uma lei do parlamento ou, mais habitualmente, por legislação secundária via o uso de poderes conferidos ao secretário de estado por uma lei. Se já existir uma lei do parlamento sob a qual o tratado pode ser implementado, não é necessário passar nenhuma legislação viabilizadora. Acordos internacionais não são todos individualmente incorporados na lei inglesa ou escocesa por nova legislação específica.

Este é um processo muito cuidadoso, passo a passo, levado a cabo por advogados e oficiais dos Negócios Estrangeiros, Conselho de Ministros, Ministério do Interior, Parlamento e outros. Cada um irá olhar em paralelo para cada cláusula do tratado e verificar se pode ser aplicada. Todas as mudanças necessárias para a entrada em vigor do tratado têm então de ser feitas – emendas à legislação, e necessários passos administrativos. Só quando todos os obstáculos forem ultrapassados, incluindo legislação, e todos os oficiais do Parlamento, Tesouro, Conselho de Ministros, Ministério do Interior e Negócios Estrangeiros certificarem que o tratado é capaz de produzir efeito no Reino Unido, é que os conselheiros legais dos Negócios Estrangeiros irão dar aval para que o tratado seja ratificado. É absolutamente impossível ratificar o tratado antes dos conselheiros legais dos Negócios Estrangeiros terem dado esta permissão.

Este é um processo sério. É por isso que o Tratado de Extradição do Reino Unido e Estados Unidos foi assinado em 2003 e ratificado em 2007. Tal não é uma demora anormal.

Por isso sei com toda a certeza que TODOS os departamentos legais relevantes do governo britânico TIVERAM de concordar que o artigo 4.1 do Tratado de Extradição do Reino Unido e Estados Unidos era capaz de ter efeito sob a Lei de Extradição de 2003. Essa certificação teve de acontecer ou o tratado nunca teria sido ratificado.

Por arrasto depreende-se que o governo do Reino Unido, ao procurar argumentar agora que o artigo 4.1 é incompatível com a Lei de 2003, está conscientemente a mentir. Não poderia haver mais grosseiro abuso processual.

Estive ansioso para que a audiência sobre esta questão em particular concluísse para que eu pudesse dar-vos o benefício da minha experiência. Por agora farei uma pausa, mas mais tarde no dia de hoje espero publicar mais sobre a disputa de ontem no tribunal sobre libertar Julian do banco dos réus blindado anti-terrorista.


A Caixa de Vidro Blindado é um Instrumento de Tortura

Por Craig Murray a 2 de Março de 2020

Na audiência à parte de quinta-feira sobre permitir a Assange sair da caixa blindada para se sentar com a sua equipa legal, fui testemunha directa que a decisão de Baraitser contra Assange foi levada pela própria para o tribunal ANTES de ter ouvido o advogado de defesa argumentar, e lida completamente inalterada.

Posso começar por explicar-vos a minha posição na galeria do pública em relação à juíza. Durante toda a semana sentei-me deliberadamente no assento à frente e à direita. A galeria tem vista através de uma janela de vidro blindado a uma altura de cerca de dois metros acima do tribunal. Percorre um dos laterais do tribunal e o canto no extremo direito está acima da bancada da juíza, que se senta perpendicularmente a este. Desse modo, tem-se a partir do canto direito da galeria do público uma vista ininterrupta e extraordinária para o topo de toda a bancada da juíza, e é possível ver todos os papéis da juíza e ecrã de computador.

O conselheiro da rainha Mark Summers delineou que no caso de Belousov vs Rússia, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em Estrasburgo decidiu contra o estado da Rússia porque Belousov tinha sido julgado numa jaula de vidro praticamente idêntica em construção e posição no tribunal àquela em que Assange está agora. Dificultou a sua participação no julgamento e o seu livre acesso aos advogados, e carenciou-o de dignidade humana enquanto réu.

Summers continuou que era prática normal certas categorias de prisioneiros por condenar fossem libertados do banco dos réus para se sentarem com os seus advogados. O tribunal tinha relatórios psiquiátricos sobre a depressão clínica extrema de Assange, e de facto o guia de boas práticas para tribunais do Ministério da Justiça do Reino Unido indicava que pessoas vulneráveis deviam ser libertadas para que se sentem ao lado dos seus advogados. Não estava a ser pedido tratamento especial para Assange – ele estava a pedir para ser tratado como qualquer outra pessoa vulnerável.

A defesa foi limitada pela sua incapacidade de comunicar confidencialmente com o seu cliente durante os procedimentos. Na fase seguinte do julgamento, quando as testemunhas estavam a ser examinadas, a comunicação atempada era essencial. Para além do mais, só podiam falar com ele através da abertura no vidro, ao alcance auditivo dos agentes de segurança privada que o estavam a guardar (foi clarificado que eram da Serco, não do Grupo 4, como Baraitser havia dito no dia anterior), e na presença de microfones.

Baraitser ficou então maldisposta e falou com um tom de cortar à faca. “Quem são essas pessoas atrás de si no banco de trás?” perguntou sarcasticamente a Summers – uma pergunta à qual sabia muito bem a resposta. Summers respondeu que eram parte da equipa jurídica da defesa. Baraitser disse que Assange os podia contactar se tivesse alguma questão a transmitir. Summers respondeu que havia um corredor e uma parede baixa entre a caixa de vidro e a sua posição, e que tudo o que Assange podia ver para lá da parede era a parte de cima das suas nucas. Baraitser disse que não tinha visto Assange a chamá-los. Summers disse que gritar do outro lado do tribunal não era nem confidencial nem satisfatório.

Fui agora aconselhado de que é definitivamente uma ofensa publicar a imagem de Julian na sua caixa de vidro, apesar de não a ter tirado e esta estar absolutamente em todo o lado na Internet. É também de notar que estou de volta ao meu próprio país, Escócia, onde o meu blogue está sediado, e nenhum deles estão abrangidos pela jurisdição dos tribunais ingleses. Mas estou ansioso por não lhes dar qualquer desculpa para me banir das audiências de tribunal, por isso removi-os, mas podem vê-los aqui.

Esta é a foto tirada ilegalmente (não por mim) de Assange em tribunal. Se olharem cuidadosamente, podem ver que há um corredor e uma parede de madeira baixa entre ele e a fila de trás dos advogados. Podem ver um dos dois guardas prisionais a guardá-lo dentro da caixa.

Baraitser disse que Assange podia passar notas, e que tinha testemunhado notas a serem passadas por ele. Summers respondeu que os funcionários do tribunal tinham agora banido a passagem de notas. Baraitser disse que podiam levar o assunto à Serco, que era uma questão para as autoridades prisionais.

Summers defendeu que, contrariamente à declaração de Baraitser no dia anterior, ela tinha de facto jurisdição sobre a questão de libertar Assange do banco dos réus. Baraitser interveio para dizer que estava agora de acordo. Summers disse então que tinha providenciado um conjunto de autoridades para mostrar que Baraitser também tinha estado errada em dizer que para se estar sob custódia só podia significar estar no banco dos réus. Podia-se estar em custódia em qualquer local dentro do recinto do tribunal, ou de facto até no exterior. Baraitser ficou bastante irritada com isto e declarou que apenas havia dito que entrega à custódia do tribunal devia equivaler à entrega ao banco dos réus.

Ao qual Summers respondeu memorávelmente, agora bastante chateado “Bom, tal também está errado, e esteve errado durante estes últimos oito anos.”

A fechar a argumentação, Baraitser fez o seu julgamento sobre esta questão. Agora a parte interessante, e sou uma testemunha directa. Ela leu o julgamento, o qual tinha várias páginas escritas à mão. Tinha-o trazido consigo para o tribunal num molho, e não lhe fez quaisquer emendas. Tinha escrito o seu julgamento antes de sequer ouvir Mark Summers falar.

Os seus pontos principais eram que Assange podia comunicar com os seus advogados via gritar a partir da caixa. Ela tinha-o visto a passar notas. Estava disposta a interromper os procedimentos do tribunal a qualquer momento para que Assange descesse com os seus advogados até às celas para discussão, e se tal alongasse a duração da audiência de três para seis semanas, podia levar tanto tempo quanto necessário.

Baraitser declarou que nenhum dos relatórios psiquiátricos anteriormente na sua posse defendiam ser necessário que Assange saísse do banco de réus blindado. Uma vez que tal questão não havia sido colocada a nenhum dos psiquiatras – e provavelmente nenhum deles sabia o que quer que fosse sobre configurações de tribunal – é difícil que tal seja surpreendente.

Tenho estado a perguntar-me porque é que é tão essencial ao governo britânico manter Assange naquela caixa, incapaz de ouvir os procedimentos ou instruir os seus advogados em resposta às provas, mesmo quando o conselheiros jurídicos pelo governo dos Estados Unidos declararam não ter nenhuma objecção a Assange sentar-se na frente do tribunal.

A resposta está na avaliação psiquiátrica de Assange dada ao tribunal pelo muito destacado professor Michael Kopelman (que é familiar a todos os que leram Homicídio em Samarkand):

O Sr. Assange mostra praticamente todos os factores de risco que os investigadores de Oxford descreveram em prisioneiros que ou se suicidaram ou levaram a cabo tentativas letais. … Estou tão confiante quanto um psiquiatra alguma vez pode estar, que se a extradição para os Estados Unidos se tornar iminente, o Sr. Assange irá encontrar uma forma de se suicidar.

O facto de que Kopelman, como disse Baraitser, não declarar especificamente que a caixa de vidro blindado é má para Assange, não reflecte nada para além do facto de que não lhe foi feita tal pergunta. Qualquer ser humano com um resquício de decência seria capaz de retirar a inferência. O argumento redutor de Baraitser de que nenhum psiquiatra havia declarado especificamente que ele deveria ser libertado da caixa blindada é extraordinariamente insensível, desonesto e desumano. É quase certo que nenhum psiquiatra teria concebido que ela decidiria levar a cabo tal tortura.

Portanto, porque é que Baraitser o está a fazer?

Penso que o confinamento ao estilo Hannibal Lecter de Assange, este geek intelectual dos computadores, não tem base racional alguma e é uma tentativa deliberada de levar Julian ao suicídio. O tribunal anti-terrorista de máxima segurança está fisicamente dentro do complexo fortaleza que alberga a prisão de segurança máxima. Ele é trazido algemado e sob escolta pesada de e para a sua célula solitária até ao banco dos réus blindado via um túnel subterrâneo. Nestas circunstâncias, que possível necessidade existe para que ele seja continuamente alvo de revistas corporais e às cavidades? Porque é que não lhe é permitido ter os seus papéis de tribunal? O mais revelador para mim foi o facto de não lhe ser permitido apertos de mão ou tocar os seus advogados pela abertura na caixa blindada.

Estão a impor sem descanso a negação sistemática de qualquer conforto humano básico, como o toque da ponta dos dedos de um amigo, ou a bloquear o alívio que ele poderia obter apenas por estar ao lado de alguém amigável. Estão a assegurar a continuação dos efeitos psicológicos extremos da isolação causada por praticamente um ano de regime de isolamento. Uma pequena amostra de conforto humano podia fazer uma enorme quantidade de bem à sua saúde mental e resiliência. Estão determinados a impedi-lo a todo o custo. Estão a tentar levá-lo a matar-se – ou a criar nele as condições em que a sua morte por estrangulamento possa ser explicada e ignorada como um suicídio.

Esta é também a única explicação que consigo imaginar para o porquê de estarem a arriscar a criação de tão óbvias condições para a anulação do julgamento. Os mortos não podem apelar.

Lembraria que Julian é um preso preventivo que serviu uma sentença de duração sem precedentes por não comparecer em tribunal após fiança. A sua situação actual é a de um suposto homem inocente a enfrentar acusações. Essas acusações não têm razão de ser para lá da publicação das revelações de Chelsea Manning sobre crimes de guerra.

Que Baraitser está a agir sob instruções parece-me certo. Tem estado desesperada ao longo de todo o julgamento para aproveitar qualquer oportunidade para negar qualquer responsabilidade pelo que está a acontecer a Julian. Ela declarou que não tem jurisdição sobre o seu tratamento na prisão, e mesmo quando tanto a defesa como a acusação se combinaram para declarar que era prática normal os magistrados enviarem direcções ou pedidos aos serviços prisionais, ela recusou aceitar que assim fosse.

Baraitser está claramente a tentar distanciar-se psicologicamente de qualquer agência sobre o que está a ser feito. Para esse propósito, fez um jorro de negações de jurisdição ou capacidade de influenciar os desenvolvimentos. Disse que não tinha jurisdição para interferir com as revistas corporais, o algemar e a retirada dos papeis a Assange, ou com este ser mantido em solitária. Disse que não tinha jurisdição para solicitar que os advogados de defesa dele tivessem mais acesso ao seu cliente na prisão para preparar a sua defesa. Disse que não tinha jurisdição sobre a posição dele na sala de tribunal. Sugeriu em vários momentos que recai sobre a Serco decidir se ele pode passar notas aos seus advogados e sobre o Grupo 4 decidir se ele pode ser solto do banco dos réus blindado. As alturas em que ela parece mais feliz a escutar provas é quando o advogado de acusação James Lewis argumenta que ela não tem nenhuma decisão a tomar excepto assinar a extradição porque está tudo nos trâmites e que o artigo 4 do tratado não tem base legal.

Um membro da família Assange comentou comigo no final da primeira semana que ela parece muito preguiçosa, e portanto encantada com aceitar quaisquer argumentos que reduzam a quantidade de trabalho que tem de fazer. Penso que a questão é outra. Penso que há um canto na mente desta filha de dissidentes do Apartheid que rejeita o seu próprio papel na tortura de Assange, e que está continuamente a urgir que “Eu não tive escolha, eu não tive agência”. Aqueles que sucumbem a fazer o mal têm de encontrar o conforto interno que podem.

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