A greve na linha da frente do combate ao COVID19~ 8 min

Por Duarte Guerreiro e Simone Vieira

Em Portugal, uma linha argumentativa que tem sido usada para justificar a decisão transparentemente abusiva e pro-capital de proibir as greves (e agora até a consulta legislativa a organizações laborais) como parte do estado de emergência, é de que protege a sociedade do oportunismo dos trabalhadores organizados. 

Dizem os génios da análise política que médicos, enfermeiros, trabalhadores da distribuição e outros sectores essenciais, iam esfregar as suas mãos e desatar a declarar greves a torto e a direito para engordar o salário à custa da miséria alheia. Todas estas pessoas que dedicam as suas vidas a servir e salvar outros, cujos entes-queridos também estão sob risco, iam neste momento de crise apontar o vírus à cabeça da avózinha colectiva dos portugueses.

Não é falso que as greves tenham explodido em todo o mundo com o COVID19, mas tal não se deve à ganância dos trabalhadores. O verdadeiro sequestrador neste cenário são todos os patrões, senhorios e donos de capital que ameaçam os trabalhadores com o risco de corte de rendimentos e despejos para os fazer marchar de volta para a produção não-essencial ou para trabalhar nos sectores essenciais sem medidas de protecção adequadas — máscaras, luvas, desinfectante, distanciamento — expondo-os ao vírus e, por extensão, aos seus entes queridos, assim como aos clientes e pessoas vulneráveis a seu cuidado.

Ao invés de serem uma vaga de terrorismo social, estas greves estão a salvar muitas vidas.

Itália: da greve selvagem à greve geral

Em Itália, a resistência começou nas zonas mais industrializadas a norte, onde as condições de trabalho são mais apinhadas, perante a inactividade do poder político e patronal. Reluctantemente, perante uma vaga de greves selvagens e pressão dos trabalhadores, os principais sindicatos tiveram de se posicionar e o governo acabou a decretar a paragem das actividades não-essenciais.

No entanto, por pressão das confederações patronais, o decreto tinha tantos buracos e excepções que era o mesmo que quase nada. Surge então a ameaça da greve geral, e com esta são tomadas medidas mais sérias.

De relembrar que um dos motivos porque a pandemia está a afectar particularmente a Itália foi a demora na tomada de medidas, mesmo quando já se conhecia o exemplo chinês. Ao invés disso, tanto o patronato como o poder político promovia irresponsavelmente o slogan de que a “Itália não pára”. Ou seja, a vossa morte é um preço alto, mas um que estamos dispostos a pagar para salvar “a economia”.

Estados Unidos da América: greves selvagens na terra da precariedade

Com a quarentena, as compras online aumentaram. Os sectores da produção, abastecimento e fornecimento estão sobrecarregados. Para fazer face ao aumento de consumo, a Amazon respondeu com a decisão de contratar mais 100 mil trabalhadores precários. Ao mesmo tempo, despede e espalha difamações sobre trabalhadores que organizam protestos em armazéns com casos confirmados mas sem medidas de segurança adequadas à situação. Entretanto o vírus espalhou-se a mais de 50 armazéns.

Uma declaração da Internacional dos Trabalhadores da Amazon exigia como medidas:

1. O encerramento imediato dos armazéns da Amazon até a pandemia dos coronavírus ser dada como terminada pela Organização Mundial de Saúde. Durante este encerramento, a Amazon deve pagar a todos os trabalhadores o salário por inteiro.

2. Que a Amazon dê 20$ mil milhões aos sistemas de saúde públicos dos países em que a Amazon tem operações.

3. Até a Amazon fechar os seus armazéns, a companhia deve providenciar pagamento por baixa de doença a todos os trabalhadores doentes, de quarentena, que precisam de cuidar de entes queridos, ou que precisam de cuidar de crianças devido ao encerramento das escolas.

4. Até a Amazon encerrar os seus armazéns, os trabalhadores da Amazon devem receber subsídio de trabalho de risco.

5. Até a Amazon encerrar os seus armazéns, não devem haver reprimendas ou despedimentos relacionados com Resultados ou Tempo de Descanso para que os trabalhadores possam priorizar a segurança acima da produtividade nestas condições de trabalho perigosas.

6. Até a Amazon encerrar os seus armazéns, a empresa deve reduzir os horários de trabalho nos seus armazéns, sem reduzir os salários. Os trabalhadores devem ter mais tempo livre pago para lhes permitir cumprir com as suas necessidades básicas e lidar com o impacto do Corona nas nossas vidas.

De relembrar que a Amazon é valorizada em mil mil milhões de dólares em bolsa e o seu dono, Jeff Bezos, tem uma fortuna pessoal de mais de mil milhões de dólares.

As acções laborais estão a afectar outros serviços de entregas como a Instacart, onde os trabalhadores abandonaram os seus postos de trabalho devido à falta de medidas de segurança há muito reclamadas. Apenas três dias depois, a empresa começa a avisar os seus clientes de que podem ter sido expostos ao coronavírus. A Instacart é valorizada em 8$ mil milhões na bolsa. A mesma história repete-se noutros negócios de distribuição de comida, como a Whole Foods e até os gigantes como a McDonalds: os trabalhadores queixam-se da falta de medidas de segurança, a administração faz vista grossa, surgem casos de COVID19 nos empregados e clientes e rebentam greves e paragens com exigências semelhantes às dos trabalhadores da Amazon.

Também os gigantes da carne processada e do agronegócio como a Perdue Farm, Pilgrim’s Pride e JBS estão a fazer os seus trabalhadores continuar a trabalhar nas condições já de si sobrelotadas e pouco higiénicas das fábricas de processamento de animais. Em algumas ocasiões, com casos já confirmados de COVID19, os trabalhadores permanecem nos seus postos, e queixam-se da ausência de medidas extra de protecção. Muitos entraram então em greve. As companhias recusam-se a assumir responsabilidade financeira pelo necessário período de quarentena de 15 dias dos trabalhadores das fábricas afectadas ou por providenciar compensação por actividade de risco. Todas estas empresas têm facturações de milhares de milhões anualmente, com centenas de milhões de lucro.

Em Massachusetts, 13 000 carpinteiros entram em greve para obrigar o estado a fechar obras de construção, citando o alto perigo a que estão expostos. Dias depois o sindicato de pintores e os seus 4000 membros fizeram o mesmo. Em Pittsburgh, os trabalhadores da recolha do lixo fazem greve selvagem, exigindo melhores protecções, tais como máscaras, e subsídios de risco. O pormenor da exigência de subsídio de risco se repetir em várias greves é devido à saúde privada dos EUA. Como disse um dos homens da recolha do lixo “Porquê? Porque temos [de pagar] altas comparticipações dos seguros [de saúde] em qualquer tipo de conta. Arriscamos as nossas vidas de cada vez que agarramos num saco do lixo”. Ou seja, o trabalhador que adoeça de coronavírus nos EUA não só teme pela sua vida, teme também a bancarrota pessoal por custas médicas se sobreviver.

Na indústria pesada, também se brinca com a vida. Metade dos trabalhadores do estaleiro naval de Bath, propriedade da General Dynamics (famosos fabricantes de armas), faltaram ao trabalho depois de um caso de COVID19 ser confirmado. Na indústria automóvel também estão a acontecer protestos. Em particular, uma fábrica da Chrysler no Michigan teve direito a greve selvagem após a confirmação de um caso positivo. Um dos trabalhadores acabou por morrer de coronavírus. Numa das fábricas da General Electric, os trabalhadores levaram a cabo uma paragem para exigir que passassem a produzir ventiladores em vez de motores a jacto.

Em lares de idosos em Pittsburgh, enfermeiros abandonam os seus postos de trabalho em protesto contra a ausência de material protector após 36 residentes e 6 cuidadores testarem positivo por coronavírus. A pedido do lobbying da indústria da saúde, a administração Trump está a remover as obrigações dos empregadores de providenciar material protector a profissionais de saúde. Nos hospitais há protestos dos enfermeiros, a mãos com uma completa e total falta de material e recursos humanos para fazer frente ao COVID19. Entretanto, as administrações dos hospitais privados despedem enfermeiras que fazem recolhas de fundos para comprar o material protector em falta e tentam implementar cortes de pagamento a médicos e enfermeiros.

No resto do mundo

Em França, Reino Unido, Irlanda, Canadá, Brasil, Colômbia, Chile e Venezuela há relatos de acções semelhantes devido à falta de preocupação com o bem estar dos trabalhadores. Até em locais a que o mundo muitas vezes vira os olhos, como Papua Nova Guiné e Zimbabwe há protestos e greves de pessoal médico devido à falta de equipamento protector.

Entretanto, em Portugal, estamos privados do direito à greve, desarmados (oficialmente) de uma das mais importantes armas no combate ao COVID19. A única capaz de fazer os senhores do capital prestar atenção à morte dos “essenciais”. Afinal de contas, um “essencial” pode sempre ser substituído por outro para manter a geração de lucro, mas quando todos param de trabalhar é outra história.

Gostaste do artigo? Considera subscrever a newsletter. Permite-nos chegar a ti directamente e evitar a censura das redes sociais.

Sigam o nosso trabalho via Facebook, Twitter, Youtube, Instagram ou Telegram; partilhem via os bonitos botões vermelhos abaixo.

Right Menu Icon