Invasão Z: Um ano depois do desembarque~ 7 min
Por Francisco Norega
Há exactamente um ano, dava-se início, nas praias de uma cidade galega, a uma invasão daquelas que não fazem capas de jornais, não abrem noticiários e não entram na história canónica. Uma invasão muito outra, protagonizada por um grupo de guerrilheiros indígenas que sonha um mundo onde caibam muitos mundos, e que ao sonhar o torna realidade.
Há exactamente um ano, 500 anos depois da queda de Technochtitlan, o esquadrão marítimo zapatista concluiu a travessia transatlântica, e desembarcou em Vigo, a cidade que se tornou a sua porta de entrada para o Velho Continente. Dois dias antes, La Montaña, a embarcação a bordo da qual cumpriram este feito, havia fundeado na baía de Baiona, onde em 1493 chegou a primeira caravela espanhola vinda das Américas, carregada com alguns “espécimes” indígenas que viriam a ser expostos para satisfazer as curiosidades europeias.
Há exactamente um ano, o Esquadrão 421, a primeira delegação zapatista, iniciava o primeiro capítulo da Viagem pela Vida. As primeiras palavras de Marijose, uma outroa (designação zapatista para as pessoas que não se identificam como homens nem como mulheres), foram dedicadas a rebaptizar o Velho Continente, que se passou a chamar SLUMIL K´AJXEMK´OP, que quer dizer “Terra Insubmissa” ou “Terra que não se resigna, que não desanima”. «E assim será conhecida pelos próprios e por estranhos enquanto houver aqui alguém que não se renda, que não se venda e que não capitule».
Há exactamente um ano, vários povos indígenas de raiz maia do estado de Chiapas, no sul do México, – que se afirmaram pública e colectivamente como zapatistas no Levantamento de 1 de Janeiro de 1994 – concretizaram algo que os intelectuais ocidentais jamais imaginariam possível. Um feito histórico, fruto da auto-organização e da determinação colectiva de um grupo de povos indígenas que decidiu fazer a viagem inversa à dos colonizadores espanhóis. Os zapatistas venceram todos os obstáculos impostos pelo racismo do estado mexicano e pelo securitarismo da Fortaleza Europa e cumpriram a sua promessa – invadir a Europa 500 anos após a batalha que marcou o fim da primeira fase da conquista espanhola do que é hoje o México.
Um exemplo de como a organização popular e a acção colectiva podem tornar realidade coisas que à primeira vista parecem impossíveis. E, com esta viagem, os zapatistas não nos deram só o exemplo de como a organização colectiva tudo pode. Também nos obrigaram a experimentá-lo na prática, ao desencadear um processo que envolveu mais de 1500 colectivos de toda a Europa Insubmissa.
Um processo complexo em que enfrentámos dificuldades e atritos, em que nos confrontámos com as nossas contradições, mas, acima de tudo, onde aprendemos fazendo, onde construímos solidariedade e tecemos laços entre resistências separadas por milhares de quilómetros de terra e mar.
Há exactamente um ano, depois de cinco séculos de colonização, os e as zapatistas chegaram às nossas terras, não para nos punir, não para cobrar, mas para escutar, para conhecer a «Europa de baixo e à esquerda».
Há exactamente um ano, iniciava-se este capítulo que envolveu, meses mais tarde, as delegações aerotransportadas (a Força Aérea Zapatista) e uma delegação do Congresso Nacional Indígena. Delegações que nos contaram as suas experiências de resistência colectiva e de construção de estruturas de auto-governo, que nos chamaram a atenção para a catástrofe climática que já sentimos todos os dias, mas cuja verdadeira dimensão ainda estamos longe de poder imaginar. Deixaram também um forte apelo à organização desde baixo, aqui no centro do Império, para resistir. Para resistir ao capitalismo que está a matar a Mãe Terra. Para resistir às guerras entre os povos. Para defender a nossa água e a nossa terra. Pela Vida. Por um mundo onde caibam muitos mundos.
Hoje, um ano depois, boa parte da Europa acaba de viver ondas de calor inéditas para esta altura do ano e, com o Verão ainda no início, muitas regiões encontram-se já em seca severa. Vemos agora, com os nossos próprios olhos, aquilo que os companheiros e companheiras zapatistas e do CNI nos vieram dizer – que «[a] Mãe Terra nos pede, aos gritos, que nos levantemos de uma vez e travemos a destruição que a vai matar, e que vai levar-nos a todos com ela.»
Há um ano, vieram para curar as feridas entre os povos. Hoje, uma onda de ódio varre o continente europeu, e todas as nações estão (aparentemente) unidas no ódio ao inimigo comum – de um lado, um inimigo a leste, do outro, a ocidente. A Ocidente e a Oriente, as elites não parecem estar preocupadas com a possibilidade de uma guerra aberta entre potências nucleares, que arrastaria a Humanidade para a ruína e depois da qual não haverá paisagem.
Hoje, um ano depois, cresce na Europa uma onda de militarismo, nacionalismo e ódio ao Outro, ao inimigo, alimentada por uma propaganda massiva das elites ocidentais e dos seus poderosos média. A sede de vingança impõem-se e oblitera qualquer apelo à paz, sumariamente considerado uma traição ao “mundo livre” ou uma colaboração com o inimigo.
O nosso inimigo, como há um ano nos vieram lembrar os zapatistas, é só um – o capitalismo. É o capitalismo que mata, que viola, que destrói. É o capitalismo que nos arrasta no seu passo inexorável rumo ao abismo, ao colapso climático, à guerra devastadora, ao extractivismo desenfreado, à destruição total da Natureza – e de nós próprios.
Hoje, um ano depois, as estruturas criadas na Europa Insubmissa para tornar possível a Viagem pela Vida, que envolveram centenas de colectivos de dezenas de territórios europeus, parecem ter-se desvanecido, ainda mais rápido do que foram erguidas.
Hoje, um ano depois, talvez pareça que as sementes tardam a germinar. Mas, por muito longa que seja a noite, o sol sempre nasce. As sementes foram-nos deixadas pelas zapatistas, foram espalhadas pelos vales, montes e planícies desta Europa Insubmissa, do território Sami no norte da escandinávia até ao extremo sul de península itálica, dos balcãs à península ibérica.
As sementes germinarão, cada uma da sua forma e ao seu ritmo, de acordo com o chão que as recebeu. Poderá demorar, e talvez as nossas mentes e os nossos hábitos europeus nos façam demorar um pouco mais no processo, mas quem sabe não estão já a brotar nos recantos mais improváveis.
O que importa é que não nos rendamos, que não nos vendamos e que não capitulemos. E, sobretudo, que não nos esqueçamos de quem é o inimigo.