lol, o Polígrafo~ 6 min
Por Duarte Guerreiro
A equipa da Guilhotina estava entregue aos seus habituais afazeres (produzir memes a comemorar a obra e vida de Bashar Al-Assad) quando todos sentimos uma súbita dor na testa.
Não era, como todos temíamos no chat de equipa, a marca do Diabo, mas algo ainda pior. Tínhamos acabado de receber o selo de aprovação do Polígrafo. Parece que a Guilhotina fez uma publicação que por acaso até era verdade, para espanto até de nós mesmos. Tanto que até os deuses da mentira e da verdade da organização do Francisco Balsemão se dignaram a meter o nosso nome sujo nas suas puras bocas durante o horário nobre.
Poderão vocês estar a perguntar que inverossímil informação estávamos a propagar para justificar tal uso dos recursos desta organização. Na verdade, nada de particularmente excitante. Uma simples reiteração de leis, códigos, registos de voto e outras minudências que tais produzidas pelo Parlamento e a que qualquer comum mortal pode aceder, que no seu conjunto deixavam claro que a direita portuguesa quer austeridade eterna.
Claro, o nosso desapontamento advém do facto de esta nem ter sido uma das nossas grandes mentiras, das quais a lista é longa e incluem pérolas de falsidade como:
- Andar para aí a dizer que o processo político da Maidan na Ucrânia estava tomado por fachos apoiados pelo Ocidente que iam levar o país à ruína.
- Tentar convencer os pobres idiotas que nos seguem que o Putin não está por detrás de todos os atentados contra a pureza dos fluídos corporais das democracias ocidentais.
- Defender que qualquer nação está no seu perfeito juízo de se defender de guerras de agressão ocidentais, uma vez que tal acto foi classificado pelo julgamento de Nuremberga como o maior dos crimes, pois que deste primeiro nascem todos os horrores que se seguem. Mas também é bem sabido que o painel de juízes de Nuremberga tinha comunistas soviéticos, que naturalmente devem ter subvertido o processo.
- Sim, até a Líbia tinha o direito de se defender, mesmo que pensem que o Gadafi é malvadão e tenham acreditado nas “verdades alternativas” dos jornalistas sobre gangues de mercenários negros violadores todos drogados com Viagra.
- Sim, até a Síria, mesmo que pensem que o Assad é o mais malvadão de todos. Tantas memórias incríveis da guerra da Síria. Os capacetes brancos, os jihadistas corta-cabeças que lutavam pela democracia, os convenientes ataques químicos na véspera de cada ofensiva do governo sírio…
- Sim, até o Irão, mesmo que pensem que os homens de turbante e barba comprida a falar de dedo apontado ao tecto metem medo e achem que os Estados Unidos têm razão na sua birra de 40 anos por terem perdido o acesso às reservas de petróleo iranianas.
- Insistir que existe uma coisa chamada guerra do Iêmen, que toda a gente sabe ser uma fabricação absurda, senão certamente apareceria nas notícias todos os dias que a Arábia Saudita, com o apoio dos Estados Unidos e do Reino Unido, está a usar a fome como arma de guerra contra civis.
- Argumentar estupidamente que sanções económicas são o equivalente a crimes de guerra contra a população civil de países que gananciosamente recusam doar os seus recursos naturais a esfaimadas corporações ocidentais. O nosso único propósito ao fazê-lo é esconder o facto de que todos os problemas na Venezuela são puramente derivados do gordo do Maduro comer pessoalmente todas as arepas no país.
- Que a cobertura mediática de qualquer projecto frouxo mas sincero de social-democracia na Europa imediatamente despoleta episódios de histerismo colectivo nos jornalistas sobre a “extrema-radical” meter as mãos na “máquina de imprimir dinheiro” da Alemanha. Apesar de não haver nada que os poucos sociais-democratas verdadeiros que ainda restam mais desejem do que salvar o capitalismo de si mesmo via uma gestão prudente e sensata das suas contradições
- A ideia mais estúpida de todas: que talvez exista uma alternativa ao capitalismo e a um horizonte sem fim de austeridade por um lado, e festinhas na cabeça a trilionários no outro até que a atmosfera do planeta nos cozinhe vivos.
- Que a União Europeia é uma merda anti-democrática ao serviço da banca alemã e tem feito mais pela desunião entre povos europeus e ressurgimento do fascismo com a sua agenda neoliberal do que o que compensa pelo lado de incentivar estágios internacionais para estudantes universitários betinhos.
- Que se calhar até existem motivos legítimos para haver sindicatos e greves e não é realmente tudo só porque os estivadores querem receber 5000€ todos os meses para não fazer nada ou porque os motoristas de matérias perigosas querem estragar as férias aos portugueses como nos educaram os telejornais.
- Que uma boa parte dos jornalistas e personalidades mediáticas portuguesas que fizeram carreira foram paridos por famílias de retornados ressabiados com o 25 de Abril malvadão que roubou a quinta em Angola à vovó, completamente alinhados com o projecto neoliberal e a missão “civilizadora” do imperialismo sobre as massas deslavadas estrangeiras.
E agora vamos juntar mais umas mentiras. Por exemplo, proclamar (mentirosamente) que projectos de fact checking como o Polígrafo são uma tentativa transparente da cúpula de uma profissão que durante décadas fez o seu ganha pão de mentir, distorcer e reescrever a realidade ao serviço do poder, de regenerar a sua credibilidade e restabelecer a sua supremacia sob o que é facto ou não.
Que a ideia é gerar uma barragem de fact checks da treta sobre presidentes da Junta que passaram uma nota de 500 ao cunhado para que sirvam de escudo de credibilidade para o dia em que for preciso pregar novamente petas grandes? Mesmo se os estagiários que metem a fazer fact check nem tenham qualificações para tratar os temas que estão a checkar?
Que o fazem sobre o manto de combater o populismo, quando foram eles que ajudaram a criar esse populismo ao combater fervorosamente todos os inimigos do projecto neoliberal e da pobreza disseminada que este gerou; que as guerras humanitárias que legitimaram com as suas mentiras sobre ditadores malvadões com armas químicas criaram os refugiados que agora são a miserável massa usada por racistas para ganhar votos; que depois de tiros sem fim no pé, a Internet veio apenas expor o verdadeiro horror que sentem ao serem colocados no mesmo patamar que qualquer blogueiro que se dê ao trabalho de ir à procura de factos facilmente acessíveis que os desmintam.
O dia virá em que mais uma guerra humanitária em defesa dos valores democráticos surgirá no horizonte. Em que mais um programa de austeridade será apresentado como a única alternativa. Nesse inevitável dia, que dirá o Polígrafo, o site que partilha o nome com um instrumento que famosamente não funciona?